Wednesday, June 08, 2016

Versão de La Fontaine da peste no reino animal


Pedro J. Bondaczuk

A versão do fabulista francês Jean de La Fontaine, de uma epidemia de peste bubônica no reino animal, é, em essência, idêntica à do autor original dessa história, o grego Esopo. Seu mérito não é, propriamente, o literário. É o fato dele haver tratado da doença, o que comprova que tal flagelo era sumamente familiar aos franceses. E como era! Foram inúmeras as epidemias, com centenas de milhares de mortes. Em termos literários, porém, a fábula de Esopo é muito melhor. É simples, direta, objetiva e exposta em prosa. Tornou-se modelo para todos os fabulistas que o sucederam, sem que nenhum deles sequer se aproximasse da perícia e da criatividade do verdadeiro criador. Considero todas as demais versões como plágios, embora não sejam encaradas dessa forma por ninguém.

A fábula de La Fontaine – de fato mera versão, e inferior em qualidade literária, reitero, à criação de Esopo – é apresentada em versos. Embora poucos o saibam, o fabulista francês também era poeta. Se bom ou ruim é difícil saber. Pelo menos para mim. Não tive acesso a nenhum livro de poesias dele, se é que publicou algum. Não que fosse mau escritor, longe disso. Tanto que foi membro da seletíssima Academia Francesa. Escreveu, por exemplo, o romance “Os amores de Psique e Cupido”, que lhe rendeu merecido prestígio. Foi amigo do dramaturgo Moliere (pseudônimo de Jean-Baptiste Poquelin), declarado admirador de sua obra. Integrou, também, o círculo de Jean Racine e de outras tantas personalidades do mundo da Literatura e do teatro.

O primeiro livro do gênero que o consagrou foi publicado em 1668, intitulado “Fábulas escolhidas”. Foi uma coletânea de 124 histórias, dividida em seis partes.Várias novas edições dessa obra foram publicadas em vida do autor. E a cada nova tiragem, diversas narrativas novas foram sendo acrescentadas. Para fazer-lhe justiça, tem que se ressaltar que poucas de suas fábulas foram baseadas na obra de Esopo. E raras são as que, pessoalmente, faço restrições. La Fontaine merece, amplamente, o prestígio de que goza 321 anos após sua morte (ocorrida em Paris, em 13 de abril de 1695). Mas, na comparação da sua versão da fábula “Os animais enfermos da peste” com a de Esopo, ela perde, em termos de qualidade literária, para o grego. E já nem digo em termos de originalidade e de criatividade, por razões óbvias.

Concluam por si sós, no texto que transcrevo abaixo (sendo de se notar que a tradução coube a ninguém menos do que a um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, Machado de Assis). 

“Mal que espalha o terror, o que a ira celeste
Inventou para castigar
Os pecados do mundo; a peste, em suma, a peste;
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia,

Veio entre os animais lavrar;
E se nem tudo sucumbia,
Cereto é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar vida ao moribundo alento,

Catava mais nenhum sustento.
Não havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa ou lobo que saísse
Contra a presa inocente e mansa,
Rola que à rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança.

O leão convocou uma assembléia e disse:
"Sócios meus, certamente este infortúnio veio
A castigar-nos de pecados.
Que o mais culpado entre os culpados.

Morra, por aplacar a cólera divina,
Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos tais é de uso haver sacrificados.
Assim a história no-lo ensina.
Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,

Pesquisemos a consciência.
Devorei muita carneirada.
Em que é que me ofendera? Em nada.
E tive mesmo ocasião

De comer igualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas assim como me acusei,

Bom é que cada qual se acuse; de tal sorte
Que (devemos querê-lo, e é de todo pronto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte.

- Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei
Bom demais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida;
Pois são daquelas gentes tais

Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animais".
Disse a raposa; e a corte aplaudiu-lhe o discurso.

Ninguém do tigre nem do urso,
Ninguém de outras iguais senhorias do mato,
Inda entre os atos mais daninhos,
Ousava esmerilhar um ato;
E até os últimos refeitos,
Todos os bichos rezingueiros

Não eram, no entender geral, mais que santinhos
Eis chega o burro: - ‘Tenho idéia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da ocasião, da fome e do capim viçoso,
E pode ser que do tinhoso
Um bocaquinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade’.
Mal o ouviu, a assembléia exclama:‘aqui del-rei’!   ‘
Um lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que era bom imolar esse bicho nefando,
Empestiado autor de tal calamidade.

E o pecadilho foi julgado
Um atentado.
Pois comer erva alheia! Crime abominando!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um pecado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.
Segundo sejas tu miserável ou forte,
Áulicos te farão detestável ou puro”.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: