Versão de La Fontaine
da peste no reino animal
Pedro
J. Bondaczuk
A versão do fabulista
francês Jean de La Fontaine, de uma epidemia de peste bubônica no reino animal,
é, em essência, idêntica à do autor original dessa história, o grego Esopo. Seu
mérito não é, propriamente, o literário. É o fato dele haver tratado da doença,
o que comprova que tal flagelo era sumamente familiar aos franceses. E como
era! Foram inúmeras as epidemias, com centenas de milhares de mortes. Em termos
literários, porém, a fábula de Esopo é muito melhor. É simples, direta,
objetiva e exposta em prosa. Tornou-se modelo para todos os fabulistas que o
sucederam, sem que nenhum deles sequer se aproximasse da perícia e da
criatividade do verdadeiro criador. Considero todas as demais versões como
plágios, embora não sejam encaradas dessa forma por ninguém.
A fábula de La Fontaine
– de fato mera versão, e inferior em qualidade literária, reitero, à criação de
Esopo – é apresentada em versos. Embora poucos o saibam, o fabulista francês
também era poeta. Se bom ou ruim é difícil saber. Pelo menos para mim. Não tive
acesso a nenhum livro de poesias dele, se é que publicou algum. Não que fosse
mau escritor, longe disso. Tanto que foi membro da seletíssima Academia
Francesa. Escreveu, por exemplo, o romance “Os amores de Psique e Cupido”, que
lhe rendeu merecido prestígio. Foi amigo do dramaturgo Moliere (pseudônimo de
Jean-Baptiste Poquelin), declarado admirador de sua obra. Integrou, também, o
círculo de Jean Racine e de outras tantas personalidades do mundo da Literatura
e do teatro.
O primeiro livro do
gênero que o consagrou foi publicado em 1668, intitulado “Fábulas escolhidas”.
Foi uma coletânea de 124 histórias, dividida em seis partes.Várias novas
edições dessa obra foram publicadas em vida do autor. E a cada nova tiragem,
diversas narrativas novas foram sendo acrescentadas. Para fazer-lhe justiça,
tem que se ressaltar que poucas de suas fábulas foram baseadas na obra de
Esopo. E raras são as que, pessoalmente, faço restrições. La Fontaine merece,
amplamente, o prestígio de que goza 321 anos após sua morte (ocorrida em Paris,
em 13 de abril de 1695). Mas, na comparação da sua versão da fábula “Os animais
enfermos da peste” com a de Esopo, ela perde, em termos de qualidade literária,
para o grego. E já nem digo em termos de originalidade e de criatividade, por
razões óbvias.
Concluam por si sós, no
texto que transcrevo abaixo (sendo de se notar que a tradução coube a ninguém
menos do que a um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos,
Machado de Assis).
“Mal
que espalha o terror, o que a ira celeste
Inventou
para castigar
Os
pecados do mundo; a peste, em suma, a peste;
Capaz
de abastecer o Aqueronte num dia,
Veio
entre os animais lavrar;
E
se nem tudo sucumbia,
Cereto
é que tudo adoecia.
Já
nenhum, por dar vida ao moribundo alento,
Catava
mais nenhum sustento.
Não
havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa
ou lobo que saísse
Contra
a presa inocente e mansa,
Rola
que à rola não fugisse,
E
onde amor falta, adeus, folgança.
O
leão convocou uma assembléia e disse:
"Sócios
meus, certamente este infortúnio veio
A
castigar-nos de pecados.
Que
o mais culpado entre os culpados.
Morra,
por aplacar a cólera divina,
Para
a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em
casos tais é de uso haver sacrificados.
Assim
a história no-lo ensina.
Sem
nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,
Pesquisemos
a consciência.
Devorei
muita carneirada.
Em
que é que me ofendera? Em nada.
E
tive mesmo ocasião
De
comer igualmente o guarda da manada.
Portanto,
se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas
assim como me acusei,
Bom
é que cada qual se acuse; de tal sorte
Que
(devemos querê-lo, e é de todo pronto
Justo)
caiba ao maior dos culpados a morte.
-
Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei
Bom
demais; é provar melindre exagerado.
Pois
então devorar carneiros,
Raça
lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não.
Vós fizestes-lhes, senhor,
Em
os comer muito favor.
E
no que toca aos pegureiros,
Toda
a calamidade era bem merecida;
Pois
são daquelas gentes tais
Que
imaginaram ter posição mais subida
Que
a de nós outros animais".
Disse
a raposa; e a corte aplaudiu-lhe o discurso.
Ninguém
do tigre nem do urso,
Ninguém
de outras iguais senhorias do mato,
Inda
entre os atos mais daninhos,
Ousava
esmerilhar um ato;
E
até os últimos refeitos,
Todos
os bichos rezingueiros
Não
eram, no entender geral, mais que santinhos
Eis
chega o burro: - ‘Tenho idéia que no prado
De
um convento, indo eu a passar, e picado
Da
ocasião, da fome e do capim viçoso,
E
pode ser que do tinhoso
Um
bocaquinho lambisquei
Da
plantação. Foi um abuso, isso é verdade’.
Mal
o ouviu, a assembléia exclama:‘aqui del-rei’! ‘
Um
lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que
era bom imolar esse bicho nefando,
Empestiado
autor de tal calamidade.
E
o pecadilho foi julgado
Um
atentado.
Pois
comer erva alheia! Crime abominando!
Era
visto que só a morte
Poderia
purgar um pecado tão duro.
E
o burro foi ao reino escuro.
Segundo
sejas tu miserável ou forte,
Áulicos
te farão detestável ou puro”.
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