Saturday, June 04, 2016

Enredo com várias passagens autobiográficas


Pedro J. Bondaczuk

O livro “O último homem”, de Mary Shelley, publicado, em três volumes, em 1826, tem muito a ver com a escritora e seu círculo íntimo, sobretudo com o poeta Percy Bysshe Shelley. Foi uma forma que ela encontrou para driblar a proibição do sogro, sir Timothy Shelley, de publicar uma biografia do marido (que pensava e agia de forma diametralmente oposta às idéias de sua aristocrática família, com a qual estava rompido). Afinal, ela gozava de sólida reputação como biógrafa, o que pode ser comprovado pelos artigos biográficos que escreveu, reunidos em “Dionysius Lardner's, Cabinet Cyclopaedia” (1829–46). Podem ser citados, também, os cinco volumes de “Lives”, biografando autores espanhóis, italianos, portugueses, franceses e autores de “Lardner's”.

Não resenharei “O último homem”, porquanto não faço resenhas de livro algum, nem dos meus próprios ou dos de amigos, até para não tirar o prazer dos leitores em descobrirem, por si sós, cada nuance dos respectivos enredos. O que farei será o mesmo que já fiz com outras obras que tratam do tema “Epidemias na Literatura”. Ou seja, limitar-me-ei a comentar alguns aspectos, claro, os que mais me chamaram a atenção, dele.  Após a leitura (e releitura) cuidadosa desse romance, cheguei à mesma conclusão da maioria dos críticos. Ou seja, a de que determinadas passagens são formas mascaradas de registrar episódios marcantes da sua vida.

A própria Mary Shelley reconheceu isso. Confidenciou a amigos que se inspirou, para compor os personagens centrais do livro, em seu círculo italiano. Lorde Raymond, que deixa a Inglaterra para lutar com os gregos e morre em Constantinopla, por exemplo, é baseado em Lorde Byron, que fez isso na vida real. O Conde de Windsor, Adrian, que leva seus seguidores em busca de um paraíso natural e morre quando afunda o seu barco em uma tempestade, fica claríssimo em quem se inspirou. É retrato explícito, posto que ficcional, do marido Percy Bysshe Shelley. O livro conta, como enfatizei e reiterei “n” vezes, a história de um mundo futuro, devastado por incontrolável pandemia de peste bubônica, em fins do século XXI (este nosso que estamos vivendo).

Mary Shelley afirma na introdução que, em 1818, ela descobriu, na caverna de Sibila, perto de Nápoles, uma coleção de escritos proféticos pintados por Sibila de Cumas, prevendo tal catástrofe. A escritora editou estes textos e apresentou-os em uma narrativa atual, feita em primeira pessoa por um homem (o personagem Lionel Verney, disfarce que Mary usou para retratar a si mesma) que vive no final do século XXI. A pandemia começa, em um período de guerras e convulsões políticas e sociais, na cabeceira do Rio Nilo, atingindo a devastada Constantinopla e espalhando-se, de forma implacável, por todo o mundo. Suas referências históricas são apenas aproximadas. Pudera! Mary era escritora, não profetisa. Já as antecipações tecnológicas são escassíssimas e irrelevantes no enredo. Concordo com a avaliação de um crítico, que infelizmente não consegui identificar, que escreveu: “O romance expressa a dor de Mary Shelley com a perda de sua comunidade de ‘Eleitos’, como ela os chamou, e Lionel Verney foi visto como uma saída para os seus sentimentos de perda e tédio seguindo suas mortes e as mortes de seus filhos”. Recorde-se que ela perdeu três dos quatro que gerou com Percy Shelley.

Supõe-se que a escreitora inspirou-se no livro do francês Jean-Baptiste Cousin de Grainville, “Le Dernier Homme”, traduzido para o inglês como “Omegarus and Syderia”, para dar título à sua história. Essa suposição faz todo sentido, já que esse romance foi publicado em 1805, vinte e um anos antes da redação de “O último homem” e Mary Shelley era, sabidamente, uma pessoa muito bem informada sobre o que ocorria no mundo literário. Hugh Luke pondera que: "ao acabar a história com a imagem do habitante solitário da Terra, ela (a autora) trouxe quase todo o peso do romance apoiando a ideia de que a condição do ser individual é essencialmente isolacionista e, portanto, em última análise, trágica".

Finalmente encerro meus comentários, estritamente pessoais, de “O último homem” com a transcrição do seguinte trecho desse instigante livro: “(...) Uma palavra, na realidade, alarmou-a mais que as batalhas e os cercos, pois acreditava que, durante estes, a perícia de Raymond o livraria de todo o perigo. E aquela palavra, que então não era para ela, mais do que somente isto, era ‘peste’. Esse inimigo da espécie humana havia começado, no início de junho, a levantar sua cabeça de serpente na cabeceira do Nilo e havia afetado zonas da Ásia geralmente livres de semelhante mal. A praga atingiu Constantinopla, mas como a cidade recebia, todos os anos a mesma visita, se prestou pouca atenção aos relatos que diziam que ali já havia matado mais pessoas do que normalmente matava nos meses mais quentes (...)”. Recomendo-lhe, paciente leitor, sem titubear: leia este livro de Mary Sheley!!!


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