Enredo com várias
passagens autobiográficas
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “O último
homem”, de Mary Shelley, publicado, em três volumes, em 1826, tem muito a ver
com a escritora e seu círculo íntimo, sobretudo com o poeta Percy Bysshe
Shelley. Foi uma forma que ela encontrou para driblar a proibição do sogro, sir
Timothy Shelley, de publicar uma biografia do marido (que pensava e agia de
forma diametralmente oposta às idéias de sua aristocrática família, com a qual
estava rompido). Afinal, ela gozava de sólida reputação como biógrafa, o que
pode ser comprovado pelos artigos biográficos que escreveu, reunidos em
“Dionysius Lardner's, Cabinet Cyclopaedia” (1829–46). Podem ser citados,
também, os cinco volumes de “Lives”, biografando autores espanhóis, italianos,
portugueses, franceses e autores de “Lardner's”.
Não resenharei “O
último homem”, porquanto não faço resenhas de livro algum, nem dos meus
próprios ou dos de amigos, até para não tirar o prazer dos leitores em
descobrirem, por si sós, cada nuance dos respectivos enredos. O que farei será
o mesmo que já fiz com outras obras que tratam do tema “Epidemias na
Literatura”. Ou seja, limitar-me-ei a comentar alguns aspectos, claro, os que
mais me chamaram a atenção, dele. Após a
leitura (e releitura) cuidadosa desse romance, cheguei à mesma conclusão da
maioria dos críticos. Ou seja, a de que determinadas passagens são formas
mascaradas de registrar episódios marcantes da sua vida.
A própria Mary Shelley
reconheceu isso. Confidenciou a amigos que se inspirou, para compor os
personagens centrais do livro, em seu círculo italiano. Lorde Raymond, que
deixa a Inglaterra para lutar com os gregos e morre em Constantinopla, por
exemplo, é baseado em Lorde Byron, que fez isso na vida real. O Conde de
Windsor, Adrian, que leva seus seguidores em busca de um paraíso natural e
morre quando afunda o seu barco em uma tempestade, fica claríssimo em quem se
inspirou. É retrato explícito, posto que ficcional, do marido Percy Bysshe
Shelley. O livro conta, como enfatizei e reiterei “n” vezes, a história de um
mundo futuro, devastado por incontrolável pandemia de peste bubônica, em fins
do século XXI (este nosso que estamos vivendo).
Mary Shelley afirma na
introdução que, em 1818, ela descobriu, na caverna de Sibila, perto de Nápoles,
uma coleção de escritos proféticos pintados por Sibila de Cumas, prevendo tal
catástrofe. A escritora editou estes textos e apresentou-os em uma narrativa
atual, feita em primeira pessoa por um homem (o personagem Lionel Verney,
disfarce que Mary usou para retratar a si mesma) que vive no final do século
XXI. A pandemia começa, em um período de guerras e convulsões políticas e
sociais, na cabeceira do Rio Nilo, atingindo a devastada Constantinopla e
espalhando-se, de forma implacável, por todo o mundo. Suas referências
históricas são apenas aproximadas. Pudera! Mary era escritora, não profetisa.
Já as antecipações tecnológicas são escassíssimas e irrelevantes no enredo.
Concordo com a avaliação de um crítico, que infelizmente não consegui
identificar, que escreveu: “O romance expressa a dor de Mary Shelley com a
perda de sua comunidade de ‘Eleitos’, como ela os chamou, e Lionel Verney foi
visto como uma saída para os seus sentimentos de perda e tédio seguindo suas
mortes e as mortes de seus filhos”. Recorde-se que ela perdeu três dos quatro
que gerou com Percy Shelley.
Supõe-se que a
escreitora inspirou-se no livro do francês Jean-Baptiste Cousin de Grainville,
“Le Dernier Homme”, traduzido para o inglês como “Omegarus and Syderia”, para
dar título à sua história. Essa suposição faz todo sentido, já que esse romance
foi publicado em 1805, vinte e um anos antes da redação de “O último homem” e
Mary Shelley era, sabidamente, uma pessoa muito bem informada sobre o que
ocorria no mundo literário. Hugh Luke pondera que: "ao acabar a história
com a imagem do habitante solitário da Terra, ela (a autora) trouxe quase todo
o peso do romance apoiando a ideia de que a condição do ser individual é
essencialmente isolacionista e, portanto, em última análise, trágica".
Finalmente encerro meus
comentários, estritamente pessoais, de “O último homem” com a transcrição do
seguinte trecho desse instigante livro: “(...) Uma palavra, na realidade,
alarmou-a mais que as batalhas e os cercos, pois acreditava que, durante estes,
a perícia de Raymond o livraria de todo o perigo. E aquela palavra, que então
não era para ela, mais do que somente isto, era ‘peste’. Esse inimigo da
espécie humana havia começado, no início de junho, a levantar sua cabeça de serpente
na cabeceira do Nilo e havia afetado zonas da Ásia geralmente livres de
semelhante mal. A praga atingiu Constantinopla, mas como a cidade recebia,
todos os anos a mesma visita, se prestou pouca atenção aos relatos que diziam
que ali já havia matado mais pessoas do que normalmente matava nos meses mais
quentes (...)”. Recomendo-lhe, paciente leitor, sem titubear: leia este livro
de Mary Sheley!!!
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