Fidelidade a um
compromisso de ocasião
Pedro
J. Bondaczuk
As circunstâncias, ou
seja, a realidade, não raro nos força a agir contra alguma de nossas mais
profundas e arraigadas convicções. Essas ações acabam sendo alvos de
invariáveis críticas e condenações de quem não esteja envolvido, nem mesmo
indiretamente, na questão. Afinal, como diz o povão, “pimenta nos olhos dos
outros é colírio”. Contudo, esses críticos de ocasião (normalmente mal amados
ou não amados), em circunstâncias iguais aos dos alvos de suas recriminações,
agem exatamente da mesma forma. Por isso, é perigoso dizer “dessa água não
beberei”. Beberá, sim, dependendo do tamanho da sua sede.
Estas considerações,
este prolixo “nariz de cera” como se diz no jargão jornalístico para introduzir
determinada matéria, fugindo da convencional exigência dos manuais das redações
de jornais (aos quais sempre me opus), vêm a propósito da ação do casal Mary e
Percy Shelley em relação ao casamento. Ademais, estes comentários pouco ou nada
têm a ver com jornalismo. São, quando muito (ou pelo menos pretendem ser) um
livre e descomprometido exercício literário.
Tanto a escritora,
autora do clássico “Frankenstein: o moderno Prometeu”, quanto o poeta
romântico, sempre se manifestaram, privada ou publicamente, contrários ao
casamento (pelo menos como era encarado no seu tempo). Embora não concorde com
essa postura (e tenho argumentos sólidos para discordar, que não explanarei
neste espaço, porque não vem ao caso), eu a entendo. O casal, em suma, embora
se amando, e muito, defendia o amor absolutamente livre, sem nenhum
“certificado de propriedade”. Mary, embora “liberada” pelo parceiro para
escolher quem e quantos homens quisesse, manteve-se fiel ao companheiro até a
morte, mesmo após ter enviuvado. Já seu amante teve vários casos, nenhum,
porém, duradouro ou sério. Suas cartas comprovam que nunca deixou de amar Mary.
Contudo, mesmo se opondo, reservada e publicamente, ao casamento, ambos se
casaram. Por que? Em decorrência das circunstâncias.
Quando a primeira
mulher de Percy, Harriet Westbrook, cometeu suicídio (nunca bem explicado),
este quis, obviamente, assumir a guarda dos dois filhos gerados com ela.
Todavia a família da legítima esposa, opôs-se, terminantemente, a essa
intenção. Dificultou ao máximo todos os esforços do pai nesse sentido. A
questão, como seria de se esperar, foi parar na justiça. Mary (que então era,
ainda, somente Mary Godwin) apoiou totalmente a pretensão do poeta, então ainda
só seu amante. Para melhorar a posição de Percy no caso, seus advogados
aconselharam o casal a se casar, de
papel passado e tudo para impressionar o juiz que iria julgar a questão. Assim,
ele e Mary (que estava grávida de novo, destaque-se), de fato se casaram. A
cerimônia ocorreu em 30 de dezembro de 1816, na Igreja de St. Mildred, Bread
Street, em Londres. O pai da escritora, William Godwin e a madrasta dela
compareceram ao evento. Aliás, o casamento acabou de vez com a rusga na
família, que durava desde quando o casal havia fugido para a França para ficar
junto.
Mas essa providência,
sugerida pelos advogados, não impressionou a justiça. Assim,.em março de 1817 o
Chancery Court julgou Percy Shelley moralmente inapto para assumir a custódia
de seus filhos. Colocou-os sob a tutela da família de um clérigo, sem qualquer
parentesco com nenhuma das partes. O casal, mesmo se opondo ao casamento e
embora tendo se casado pelo motivo que citei, jamais cogitou em se separar.
Apesar da renitente infidelidade de Percy, que Mary, se não concordava, pelo
menos admitia, permaneceu junto até a trágica morte do poeta em um naufrágio
ocorrido na Itália. Publicamente, nenhum dos dois mudou seu discurso. Porém,
reitero, também não manifestou a mais remota vontade de romper os vínculos
oficiais.
Mary Shelley nunca
deixou de defender o sexo livre, mesmo que homossexual, desde que consensual,
conforme comprovam centenas de artigos que publicou na imprensa de seu
país. Em 1827, por exemplo, ela foi
parte de um esquema que permitiu que a amiga Isabel Rodrigues e a amante dela,
Mary Diana Dods (que escrevia sob o nome de David Lyndsay), embarcassem para
uma vida a dois na França como homem e mulher.
Com a ajuda de um amigo, obteve, inclusive, os passaportes falsos para o
casal homossexual. Chama a atenção, porém, que mesmo favorável ao sexo livre,
Mary Shelley, pelo que consta, nunca o praticou, nem antes do casamento, nem
durante ele e nem mesmo quando ficou viúva. Permaneceu fidelíssima a Percy, ao
qual, pelo visto, jamais deixou de amar.
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