Friday, June 03, 2016

Fidelidade a um compromisso de ocasião


Pedro J. Bondaczuk

As circunstâncias, ou seja, a realidade, não raro nos força a agir contra alguma de nossas mais profundas e arraigadas convicções. Essas ações acabam sendo alvos de invariáveis críticas e condenações de quem não esteja envolvido, nem mesmo indiretamente, na questão. Afinal, como diz o povão, “pimenta nos olhos dos outros é colírio”. Contudo, esses críticos de ocasião (normalmente mal amados ou não amados), em circunstâncias iguais aos dos alvos de suas recriminações, agem exatamente da mesma forma. Por isso, é perigoso dizer “dessa água não beberei”. Beberá, sim, dependendo do tamanho da sua sede.

Estas considerações, este prolixo “nariz de cera” como se diz no jargão jornalístico para introduzir determinada matéria, fugindo da convencional exigência dos manuais das redações de jornais (aos quais sempre me opus), vêm a propósito da ação do casal Mary e Percy Shelley em relação ao casamento. Ademais, estes comentários pouco ou nada têm a ver com jornalismo. São, quando muito (ou pelo menos pretendem ser) um livre e descomprometido exercício literário.      

Tanto a escritora, autora do clássico “Frankenstein: o moderno Prometeu”, quanto o poeta romântico, sempre se manifestaram, privada ou publicamente, contrários ao casamento (pelo menos como era encarado no seu tempo). Embora não concorde com essa postura (e tenho argumentos sólidos para discordar, que não explanarei neste espaço, porque não vem ao caso), eu a entendo. O casal, em suma, embora se amando, e muito, defendia o amor absolutamente livre, sem nenhum “certificado de propriedade”. Mary, embora “liberada” pelo parceiro para escolher quem e quantos homens quisesse, manteve-se fiel ao companheiro até a morte, mesmo após ter enviuvado. Já seu amante teve vários casos, nenhum, porém, duradouro ou sério. Suas cartas comprovam que nunca deixou de amar Mary. Contudo, mesmo se opondo, reservada e publicamente, ao casamento, ambos se casaram. Por que? Em decorrência das circunstâncias.
 
Quando a primeira mulher de Percy, Harriet Westbrook, cometeu suicídio (nunca bem explicado), este quis, obviamente, assumir a guarda dos dois filhos gerados com ela. Todavia a família da legítima esposa, opôs-se, terminantemente, a essa intenção. Dificultou ao máximo todos os esforços do pai nesse sentido. A questão, como seria de se esperar, foi parar na justiça. Mary (que então era, ainda, somente Mary Godwin) apoiou totalmente a pretensão do poeta, então ainda só seu amante. Para melhorar a posição de Percy no caso, seus advogados aconselharam  o casal a se casar, de papel passado e tudo para impressionar o juiz que iria julgar a questão. Assim, ele e Mary (que estava grávida de novo, destaque-se), de fato se casaram. A cerimônia ocorreu em 30 de dezembro de 1816, na Igreja de St. Mildred, Bread Street, em Londres. O pai da escritora, William Godwin e a madrasta dela compareceram ao evento. Aliás, o casamento acabou de vez com a rusga na família, que durava desde quando o casal havia fugido para a França para ficar junto.

Mas essa providência, sugerida pelos advogados, não impressionou a justiça. Assim,.em março de 1817 o Chancery Court julgou Percy Shelley moralmente inapto para assumir a custódia de seus filhos. Colocou-os sob a tutela da família de um clérigo, sem qualquer parentesco com nenhuma das partes. O casal, mesmo se opondo ao casamento e embora tendo se casado pelo motivo que citei, jamais cogitou em se separar. Apesar da renitente infidelidade de Percy, que Mary, se não concordava, pelo menos admitia, permaneceu junto até a trágica morte do poeta em um naufrágio ocorrido na Itália. Publicamente, nenhum dos dois mudou seu discurso. Porém, reitero, também não manifestou a mais remota vontade de romper os vínculos oficiais.

Mary Shelley nunca deixou de defender o sexo livre, mesmo que homossexual, desde que consensual, conforme comprovam centenas de artigos que publicou na imprensa de seu país.  Em 1827, por exemplo, ela foi parte de um esquema que permitiu que a amiga Isabel Rodrigues e a amante dela, Mary Diana Dods (que escrevia sob o nome de David Lyndsay), embarcassem para uma vida a dois na França como homem e mulher.   Com a ajuda de um amigo, obteve, inclusive, os passaportes falsos para o casal homossexual. Chama a atenção, porém, que mesmo favorável ao sexo livre, Mary Shelley, pelo que consta, nunca o praticou, nem antes do casamento, nem durante ele e nem mesmo quando ficou viúva. Permaneceu fidelíssima a Percy, ao qual, pelo visto, jamais deixou de amar.


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