O pavor de Shakespeare
pela peste bubônica
Pedro
J. Bondaczuk
Ao se tratar de
epidemias de peste bubônica, sobretudo na Inglaterra, e ao se abordar a forma
com que seus principais escritores se referiram a esse flagelo em suas obras,
um nome jamais pode ser ignorado, sob pena do tema ficar superficial e
incompleto. Refiro-me a William Shakespeare. É verdade que o Bardo não escreveu
nenhuma peça específica sobre a doença e muito menos algum soneto a propósito.
Não, ele não fez isso. Todavia, a peste está presente em várias de suas
produções teatrais, quase sempre em forma de praga rogada por personagens
contra seus desafetos, o que prova que a doença. além de ser bastante comum,era
considerada o maior dos males que podiam afetar alguém, dada, claro, sua
altíssima letalidade. Pudera!
Cito, de cabeça, três
peças de Shakespeare de que me lembro, em que tais imprecações, feitas por
personagens, aparecem: “A tempestade”, “Ricardo III” e “Coriolano””. Devem
haver algumas outras, mas para identificá-las seria necessário reler toda a
vasta obra teatral do dramaturgo, consistente de 38 textos do gênero. Mas a
peste foi realidade onipresente, se não na obra, na vida de William
Shakespeare. E ele tinha pavor mortal da doença. No lugar dele e naquelas
circunstâncias eu também teria. Aliás, não apenas eu, mas qualquer pessoa de
bom senso. E Shakespeare tinha motivos de sobra para tanto temor. Afinal de
contas, já no seu nascimento, em 1564, venceu a primeira batalha contra o
flagelo.
O futuro gênio da
dramaturgia escapou, no parto, por muito pouco, de forma “milagrosa”, de morrer
em conseqüência da peste bubônica. Quando do seu nascimento, não só sua
cidadezinha natal, Stratford-upon-Avon, como o cantão em que ela se situava,
enfrentavam fulminante epidemia da doença. Praticamente todas as casas da
vizinhança da sua tiveram famílias inteiras dizimadas pela enfermidade. A sua,
no entanto... foi poupada. Pelo menos foi naquela epidemia específica. Quis,
como se vê, o acaso (ou sabe-se lá quem ou o quê) que a Inglaterra e o mundo
não fossem privados daquele que viria a se tornar algum dia gênio da Literatura
e da arte dramática.
Embora poupado no
nascimento, Shakespeare não escapou da tragédia da doença, que afetou
diretamente sua família. Perdeu as irmãs Joan, Margaret (apenas bebês) e Anne
(com sete anos) para a praga letal. Mas não foi só. A doença matou, também, seu
irmão Edmund, quando este tinha 27 anos. Dizimou, como se vê, a maior parte da
sua família. Como “desgraça pouca é bobagem”, como costuma afirmar o povão, a
peste matou, ainda, seu único filho, Hamnet, quando ele mal havia completado
onze anos de idade. Não conheço nenhum outro escritor que tenha experimentado
tantas perdas em conseqüência desse flagelo. Embora pessoalmente tenha sido
poupado, perdeu cinco membros queridos de sua família em alguma das tão
freqüentes epidemias da doença. Era ou não era para ter pavor?!!!
Além das mortes, para o
que, óbvio, não há remédio, a peste bubônica influenciou, pode-se dizer de
forma direta, em sua carreira de dramaturgo, primeiro como ator e
posteriormente como autor das 38 peças que nos legou. A cada epidemia – e estas
se sucediam com uma freqüência aterradora – os teatros (seu único “ganha pão”),
eram fechados, por motivos óbvios.
Todavia, Shakespeare aproveitava essas circunstâncias, esses forçados
hiatos de contato com o público, para escrever. Foi dessa forma que produziu,
por exemplo, seus sonetos, que hoje rivalizam com suas peças em popularidade e
em interesse. Escreveu, ainda, muitos dos seus principais dramas nessas
ocasiões. Além disso, pôde viajar pelo país, levando sua arte a pequenas e
médias cidades inglesas. Ocorre que nem em todas as epidemias os teatros do
interior eram também fechados. O fechamento recaía mais sobre as casas de
espetáculo londrinas. E, para não ficar “desempregado”, ele e sua “troupe”
saíam em longas excursões pelo país, o que, certamente, contribuía para
conquistar novos públicos.
Observe-se que muitas
vezes os teatros de Londres eram fechados à revelia de Elizabeth I, sabidamente
grande apreciadora e incentivadora da arte dramática. Aliás, é conhecido (e
louvado) o gosto da rainha pelos espetáculos populares, embora, não raro, ela
exagerasse. Bailados, mágicas e representações cênicas de todo tipo eram
apresentadas por onde quer que a soberana fosse e ela deliciava-se com isso.
Mas o mérito maior de Elizabeth I foi o de contrabalançar a forte tendência
puritana no seu reino. Às vezes, a vontade da rainha não era suficiente para
evitar o fechamento dos teatros, sobretudo os londrinos. Foi o que aconteceu,
por exemplo, na epidemia de 1592 a 1594. Por pressão dos líderes religiosos,
ela foi forçada a fechar as casas de espetáculo da capital. Os puritanos
recorreram a um sofisma, ou seja, a um silogismo incorreto, para forçar esse
ato extremo. Diziam (no seu supremo e tolo fanatismo): "A causa da peste é
o pecado. A causa do pecado é o teatro. Logo, observando bem, a causa da peste
é o teatro". Claro que não era!
Dependêssemos desses
fanáticos, portanto, nós, do século XXI, não teríamos jamais o que passou para
a história das artes como “Teatro Elizabetano”. Por consequência ficaríamos
privados de um William Shakespeare e de sua monumental obra dramática. Ainda
bem que sua opinião não prevaleceu. Não por “todo” o tempo, embora tenha
prevalecido por “algum”. A peste inspirou, posto que indiretamente, o Bardo a
criar vários de seus personagens. Uma coisa que o incomodava sobremaneira era o
fato das pessoas pobres não poderem pagar os medicamentos para tratar da doença
e, por isso, morrerem às dezenas, às centenas, aos milhares até. Ele supunha,
claro, que tais “medicamentos” fossem eficazes, quando em verdade nem eram.
Afinal, como tenho enfatizado e reiterado, as causas da peste bubônica eram
desconhecidas e, por conseqüência, tudo o que se destinasse a curá-la era
inócuo, quando não mero veneno, que só apressava a morte.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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