Sunday, June 12, 2016

O pavor de Shakespeare pela peste bubônica


Pedro J. Bondaczuk

Ao se tratar de epidemias de peste bubônica, sobretudo na Inglaterra, e ao se abordar a forma com que seus principais escritores se referiram a esse flagelo em suas obras, um nome jamais pode ser ignorado, sob pena do tema ficar superficial e incompleto. Refiro-me a William Shakespeare. É verdade que o Bardo não escreveu nenhuma peça específica sobre a doença e muito menos algum soneto a propósito. Não, ele não fez isso. Todavia, a peste está presente em várias de suas produções teatrais, quase sempre em forma de praga rogada por personagens contra seus desafetos, o que prova que a doença. além de ser bastante comum,era considerada o maior dos males que podiam afetar alguém, dada, claro, sua altíssima letalidade. Pudera!

Cito, de cabeça, três peças de Shakespeare de que me lembro, em que tais imprecações, feitas por personagens, aparecem: “A tempestade”, “Ricardo III” e “Coriolano””. Devem haver algumas outras, mas para identificá-las seria necessário reler toda a vasta obra teatral do dramaturgo, consistente de 38 textos do gênero. Mas a peste foi realidade onipresente, se não na obra, na vida de William Shakespeare. E ele tinha pavor mortal da doença. No lugar dele e naquelas circunstâncias eu também teria. Aliás, não apenas eu, mas qualquer pessoa de bom senso. E Shakespeare tinha motivos de sobra para tanto temor. Afinal de contas, já no seu nascimento, em 1564, venceu a primeira batalha contra o flagelo.

O futuro gênio da dramaturgia escapou, no parto, por muito pouco, de forma “milagrosa”, de morrer em conseqüência da peste bubônica. Quando do seu nascimento, não só sua cidadezinha natal, Stratford-upon-Avon, como o cantão em que ela se situava, enfrentavam fulminante epidemia da doença. Praticamente todas as casas da vizinhança da sua tiveram famílias inteiras dizimadas pela enfermidade. A sua, no entanto... foi poupada. Pelo menos foi naquela epidemia específica. Quis, como se vê, o acaso (ou sabe-se lá quem ou o quê) que a Inglaterra e o mundo não fossem privados daquele que viria a se tornar algum dia gênio da Literatura e da arte dramática.

Embora poupado no nascimento, Shakespeare não escapou da tragédia da doença, que afetou diretamente sua família. Perdeu as irmãs Joan, Margaret (apenas bebês) e Anne (com sete anos) para a praga letal. Mas não foi só. A doença matou, também, seu irmão Edmund, quando este tinha 27 anos. Dizimou, como se vê, a maior parte da sua família. Como “desgraça pouca é bobagem”, como costuma afirmar o povão, a peste matou, ainda, seu único filho, Hamnet, quando ele mal havia completado onze anos de idade. Não conheço nenhum outro escritor que tenha experimentado tantas perdas em conseqüência desse flagelo. Embora pessoalmente tenha sido poupado, perdeu cinco membros queridos de sua família em alguma das tão freqüentes epidemias da doença. Era ou não era para ter pavor?!!!

Além das mortes, para o que, óbvio, não há remédio, a peste bubônica influenciou, pode-se dizer de forma direta, em sua carreira de dramaturgo, primeiro como ator e posteriormente como autor das 38 peças que nos legou. A cada epidemia – e estas se sucediam com uma freqüência aterradora – os teatros (seu único “ganha pão”), eram fechados, por motivos óbvios.  Todavia, Shakespeare aproveitava essas circunstâncias, esses forçados hiatos de contato com o público, para escrever. Foi dessa forma que produziu, por exemplo, seus sonetos, que hoje rivalizam com suas peças em popularidade e em interesse. Escreveu, ainda, muitos dos seus principais dramas nessas ocasiões. Além disso, pôde viajar pelo país, levando sua arte a pequenas e médias cidades inglesas. Ocorre que nem em todas as epidemias os teatros do interior eram também fechados. O fechamento recaía mais sobre as casas de espetáculo londrinas. E, para não ficar “desempregado”, ele e sua “troupe” saíam em longas excursões pelo país, o que, certamente, contribuía para conquistar novos públicos.

Observe-se que muitas vezes os teatros de Londres eram fechados à revelia de Elizabeth I, sabidamente grande apreciadora e incentivadora da arte dramática. Aliás, é conhecido (e louvado) o gosto da rainha pelos espetáculos populares, embora, não raro, ela exagerasse. Bailados, mágicas e representações cênicas de todo tipo eram apresentadas por onde quer que a soberana fosse e ela deliciava-se com isso. Mas o mérito maior de Elizabeth I foi o de contrabalançar a forte tendência puritana no seu reino. Às vezes, a vontade da rainha não era suficiente para evitar o fechamento dos teatros, sobretudo os londrinos. Foi o que aconteceu, por exemplo, na epidemia de 1592 a 1594. Por pressão dos líderes religiosos, ela foi forçada a fechar as casas de espetáculo da capital. Os puritanos recorreram a um sofisma, ou seja, a um silogismo incorreto, para forçar esse ato extremo. Diziam (no seu supremo e tolo fanatismo): "A causa da peste é o pecado. A causa do pecado é o teatro. Logo, observando bem, a causa da peste é o teatro". Claro que não era!

Dependêssemos desses fanáticos, portanto, nós, do século XXI, não teríamos jamais o que passou para a história das artes como “Teatro Elizabetano”. Por consequência ficaríamos privados de um William Shakespeare e de sua monumental obra dramática. Ainda bem que sua opinião não prevaleceu. Não por “todo” o tempo, embora tenha prevalecido por “algum”. A peste inspirou, posto que indiretamente, o Bardo a criar vários de seus personagens. Uma coisa que o incomodava sobremaneira era o fato das pessoas pobres não poderem pagar os medicamentos para tratar da doença e, por isso, morrerem às dezenas, às centenas, aos milhares até. Ele supunha, claro, que tais “medicamentos” fossem eficazes, quando em verdade nem eram. Afinal, como tenho enfatizado e reiterado, as causas da peste bubônica eram desconhecidas e, por conseqüência, tudo o que se destinasse a curá-la era inócuo, quando não mero veneno, que só apressava a morte.


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