Thursday, June 02, 2016

Paixão que sobreviveu a tempestades e vendavais

Pedro J. Bondaczuk

O poeta Percy Bysshe Shelley entrou cedo na vida de Mary Shelley (que na ocasião ainda era Mary Godwin) e nunca mais saiu, mesmo depois de morto. Ambos conheceram-se em 1814, quando a futura escritora estava prestes a completar 17 anos de idade. Ele, por sua vez, tinha vinte e dois, era casado com Harriet Westbrook, com quem tinha um filho (e ela estava grávida do segundo). Mary, por sua vez, era uma adolescente que já mostrava inequívoco talento para as letras, incentivada pelo pai, o filósofo William Godwin, que defendia idéias liberais, consideradas anarquistas, visto como o precursor da filosofia libertária. Tinha alguns livros publicados, bastante populares, entre os quais “Uma investigação concernente à justiça política”, “As coisas como são” e “As aventuras de Caleb Williams”. Percy era seu discípulo e admirador. Freqüentava sua casa e era entusiasta seguidor dos princípios propostos pelo filósofo.

Aliás, essa estreita vinculação com William Godwin levou o poeta a romper relações com sua aristocrática família, sobretudo com o pai, Timothy Shelley que o avisou que se quisesse ser seu herdeiro, deveria seguir o modelo tradicional de aristocracia com que foi educado. Percy recusou. A gota de água para a ruptura ocorreu quando o poeta quis doar expressiva soma de dinheiro da família para causas de ajuda a desamparados. E como era aquela mocinha voluntariosa naquela época? Bem, talento literário não lhe faltava e era bastante precoce. Tanto que publicou seu primeiro poema antes mesmo de ingressar na adolescência, aos dez anos, quando a maioria das meninas de sua idade só pensava em brincar com bonecas e nada mais.

Mary, no entanto, já pensava em coisas mais nobres e complexas. O pai descreveu-a, quando a garota ainda tinha 15 anos, da seguinte forma: " É uma mente ativa, um tanto imperativa e singularmente brilhante. Seu desejo de conhecimento é grande, e sua perseverança em tudo o que empreende é quase invencível". Mary e Percy se encontraram pela primeira vez no mausoléu de Mary Wollstonecraft, a mãe da futura escritora, que morrera dez dias após seu nascimento, de febre puerperal. Ela estava sepultada  em St Pancras Old Church, onde se deu o encontro. E... ambos apaixonaram-se.

Ocorre que William Godwin opôs-se, terminantemente, ao romance da filha com seu discípulo. A principal causa da oposição foi o fato do poeta já ser casado. E justo ele que se dizia “anarquista” e que, embora casado duas vezes, opunha-se, pelo menos da boca para fora, ao casamento, argumentando que “ninguém é de ninguém”! Tentava, na verdade, proteger a reputação da filha. Apreciava Percy como discípulo, mas não o queria para genro ou, no caso, pior ainda: para amante da mocinha. Ademais, Godwin, que estava falido, após meter-se em comércio, esperava socorro financeiro do poeta, que não veio. E Mary, como se sentia? Confusa! Absolutamente confusa! Tratando dessa época, ela escreveria, anos mais tarde, que o maior obstáculo para assumir aquele relacionamento não era o fato de Percy ser casado, o que parecia não a incomodar, mas “meu apego excessivo e romântico por meu pai”.

Sofrendo ferrenha oposição das respectivas famílias e, claro, da sociedade puritana de então, os pombinhos apaixonados decidiram fugir. Em 28 de julho de 1814, embarcaram, secretamente, rumo à França. Levaram, consigo, a meia irmã da futura escritora, Claire Clermont, que viria a se tornar, mais tarde, amante do poeta e aventureiro Lorde Byron (George Gordon Byron). Trocaram o certo pelo incerto, dando início a um período de grandes privações, em que chegaram a passar fome. Percy partiu deixando para trás a esposa grávida, esperando o segundo filho dele. O curioso é que os dois eram convictamente contrários ao casamento, embora tempos depois, premidos pelas circunstâncias, viessem a se casar e a manter o vínculo pelo resto de suas vidas. Isso ocorreu, por razões compreensíveis, mas só após 10 de dezembro de 1818, quando a esposa do poeta, Harriet, foi encontrada afogada no lago Serpentine, no Hyde Park. A polícia concluiu tratar-se de suicídio e o caso foi imediatamente abafado.

Mas, voltando à fuga do casal e da meia irmã, Claire, quando o trio chegou a Paris, estava completamente sem recursos. Na França, os três decidiram viajar com destino à Suíça, em burro, em mula e em carroça, atravessando um território francês recentemente devastado pela guerra. Em 1826, Mary escreveria sobre esse período: "Estávamos numa novela, sendo um romance real", Sua vida foi recheada de tragédias. Teve, por exemplo, quatro filhos com o poeta, dos quais apenas o último sobreviveu. A primeira, prematura, viveu somente poucos dias. Uma outra de suas filhas morreu de tifo e o filho seguinte foi morto pela malária. Ela mesma contraiu varíola, da qual conseguiu se curar, não sem que a doença deixasse marcas, cicatrizes para sempre em seu corpo. Outra tragédia que a afetou foi a morte de Percy, em um naufrágio na Itália, sem que seu corpo fosse jamais encontrado.

A pergunta que muita gente faz é: “Será que Mary se arrependeu da decisão que tomou ao se juntar da forma como se juntou ao poeta aventureiro e irresponsável que só problemas lhe trouxe?” Se houve arrependimento, a escritora nunca declarou ou sequer insinuou, nem mesmo para os mais íntimos. A julgar por seus atos, após enviuvar, presume-se que não houve qualquer arrependimento. Tanto que, até sua morte (prematura), ocorrida em 1º de fevereiro de 1851, aos 54 anos de idade, vítima de um tumor cerebral, Mary Shelley empenhou-se, de corpo e alma, sobretudo como editora, na divulgação da obra do marido e na preservação de sua memória, com o sacrifício dos próprios interesses. O tempo encarregou-se de mostrar que ela era muito melhor escritora do que Percy. Foi, contudo, coerente com sua paixão, da qual, em momento algum, jamais abriu mão, que sobreviveu a “tempestades e vendavais”.


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