Abordagens distintas de
duas testemunhas da peste
Pedro
J. Bondaczuk
A chamada “Era Tudor”,
sobretudo os reinados da rainha Elizabeth I e do seu sucessor, Jaime I, foi um
período memorável para a Inglaterra. Foi quando o país emergiu, por exemplo,
como vasto império, como superpotência mundial, próspera e militarmente
poderosa, sobrepujando uma Espanha, então em decadência. Seus navios singravam
todos os mares do Planeta, levando e trazendo toda a sorte de mercadorias, de e para todos os países do mundo. E não só
isso. Culturalmente, a Inglaterra conheceu uma era das mais luminosas e
vibrantes, com a emersão de grandes poetas, de dramaturgos inigualáveis, de
destacados filósofos, enfim, de intelectuais dos mais respeitáveis e acatados.
Paradoxalmente, a época que medeia de fins do século XVI a pelo menos metade do
século XVII, foi, também, caracterizada por várias catastróficas epidemias de
peste bubônica, que ceifaram milhares vidas e deixaram marcas indeléveis na
população inglesa.
A despeito do flagelo
não fazer distinção de classe ou de fortuna, as mais afetadas foram,
obviamente, as pessoas pobres, carentes de informações e de quaisquer recursos.
Os ricos tinham condições de viajar, de se afastar do foco da enfermidade e de
permanecer fora do país enquanto esta não fosse controlada. Já os de escassas
posses, e principalmente os que nada tinham (a imensa maioria) contavam,
apenas, com o fortuito, com o acaso, com circunstâncias que não dependiam nem
um pouco deles, para não serem vítimas da peste. Não tinham como fugir. Citei,
em textos anteriores, um punhado de livros, de alguns escritores famosos desse
período, que trataram, em suas obras, cada qual de sua forma, dessas epidemias.
Por mais meticuloso que eu busque ser em minhas pesquisas, é até impossível
tratar de “todos” os que escreveram sobre o assunto. Há que se considerar,
entre outros tantos obstáculos, o principal deles: o tempo. Afinal, quase
quatro séculos nos separam destes escritores.
Antes de dar o assunto
por encerrado, todavia, devo mencionar outros dois escritores, mesmo que se
trate de abordagem somente superficial de seus respectivos relatos das
epidemias que testemunharam (e das quais escaparam incólumes). O primeiro é o
memorialista, poeta e dramaturgo George Wither (1590-1667). Ele estava em
Londres quando ocorreu a epidemia de 1625. Tratou dela em extenso poema, cujo título pode ser traduzido
como “O memorialista da Bretanha”, que publicou em 1628. Em seus versos,
alterna denúncias do que entendia como “crueldade dos tempos”, com previsões
que fez sobre as catástrofes que a Inglaterra sofreria adiante. Errou todas.
Lendo seu poema, a despeito das dificuldades que um texto em língua estranha à
nossa tendem a trazer, concluo que Wither foi não somente mau poeta, como
péssimo profeta. No segundo caso, eu aduziria: “felizmente para seu país”. Caso
suas tétricas profecias se concretizassem, a Inglaterra jamais se tornaria o
poderoso império em que se tornou. Talvez até desaparecesse do mapa.
O outro escritor, que
tratou de epidemias de peste, é o oposto de Wither, no que diz respeito à
qualidade literária de sua obra e á projeção, que o torna bastante conhecido
nos dias de hoje. É o prolífico e excelente dramaturgo Thomas Dekker
(1572-1632), contemporâneo de William Shakespeare, do qual teria sido ora
rival, ora parceiro. Oportunamente, e em outro contexto, proponho-me a tratar
de sua rica biografia. Ele escreveu vários textos sobre a peste, com destaque
para três deles: “News From Gravesend”, “The Meeting of Gallants at an
Ordinary” e, principalmente, a peça teatral “O ano maravilhoso”. Neste último
caso, soa como irônico o título dessa obra, já que ela trata da epidemia de
1603, época em que a peste era tão severa, que os teatros, principalmente os de
Londres, foram todos fechados.
Outra coisa que me leva
a estranhar o título dessa peça foi que, nesse ano específico, ocorreu a morte
da rainha Elizabeth I, que tanto incentivou as artes na Inglaterra, sobretudo a
dramaturgia, pela qual era obcecada. Sua descrição da epidemia lembra muito a
feita por Daniel Defoe, concentrando seu foco nos dramas e agruras da população
pobre, entregue não digo “á própria sorte”, mas ao seu supremo azar. Thomas
Dekker foi um escritor tão importante (e também como poeta) que até hoje
persiste uma polêmica, envolvendo um poema que compôs, intitulado “Golden
slumber” (que eu traduziria como “Sonho dourado”). Diz-se que a letra de famosa
composição com esse mesmo nome, atribuída à dupla Paul McCartney e John Lennon,
uma das faixas mais conhecidas e apreciadas do célebre LP dos Beatles, “Abbey
Road”, seria plágio dos versos do poeta renascentista.
Polêmicas à parte,
parece-me que é mesmo. Sabe-se que em 1969, Paul McCartney criou a tal canção,
mas baseado em texto de Thomas Dekker. O Beatle teria visto os tais versos no
caderno de música de sua meia irmã Ruth. Ele estava na casa do pai, em
Cheshire, brincando ao piano. Enquanto folheava um livro de músicas, que
pertencia a Ruth (o velho Jim McCartney tinha se casado de novo), Paul se
deparou com “Golden Slumbers”. Dekker a criou como canção de ninar. Sem
conseguir ler a música, McCartney criou sua própria melodia, adicionando, aqui
e ali, novas palavras, enquanto dedilhava. O “plágio” seria, portanto, apenas
da letra. Mas... Bem que os Beatles poderiam ter dado “parceria”, posto que
póstuma, a Dekker, cujos descendentes sequer cobrariam (nunca cobraram)
direitos autorais, já que a composição tornou-se de domínio público. Mas esse
fato mostra claramente a qualidade e a importância do escritor renascentista,
contemporâneo de Shakespeare.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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