Saturday, June 18, 2016

O cólera migrou do Oriente para o Ocidente


Pedro J. Bondaczuk

O cólera é, basicamente, doença do século XIX. Pelo menos foi quando ocorreram as piores epidemias (inclusive várias pandemias) de que se tem notícia. Nenhuma, porém, foi tão severa como as tantas pandemias de peste bubônica. Desconfio, todavia, que a patologia seja muito mais antiga do que se pensa, mas, provavelmente pelo fato das pessoas não conseguirem identificá-la, praticamente não há registros anteriores à Idade Média. Admite-se que tenha surgido no Oriente e migrado para o Ocidente. Vários escritores importantes trataram dela, posto que todos os que selecionei sejam dos séculos XIX e XX. Antes de comentar alguns dos principais livros que têm o cólera como foco, é indispensável “apresentar”, embora sob a visão de um leigo, como sou, algumas características da doença, que há muitas décadas não se manifesta (não epidemicamente) em países industrializados, mas que ainda é onipresente em vastas regiões da África, do Sudeste asiático e em algumas partes da América Central.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, todos os anos são registrados de três a cinco milhões de novos casos no mundo. E, em pleno século XXI – este nosso, da tão decantada globalização – segue matando um número considerável de pessoas. Conforme os citados dados da OMS, a quantidade de mortes causadas pela enfermidade oscila entre 100 mil e 200 mil anuais. Onde há tratamento de água e de esgoto, as ocorrências chegam perto de zero. Onde não há... infelizmente milhares ainda pagam com a vida por esse descaso, eliminados por uma doença facilmente evitável. Países industrializados, como Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Suécia e Suíça, entre tantos outros, não têm nenhum surto desde o início do século XX. Já no chamado Terceiro Mundo, estes se sucedem, periodicamente, sobretudo por falta de medidas mínimas de higiene.

E o que vem a ser o cólera? É uma doença infectocontagiosa do intestino delgado, transmitida, na imensa maioria dos casos, por meio de alimentos e/ou água contaminados. Seu agente causador é uma bactéria, com formato de vírgula, batizada de “Vibrio Cholerae”. Ele foi isolado, em 1883, pelo mesmo cientista que isolou o chamado “bacilo de Koch” (causador da tuberculose), ou seja, Robert Koch. Esta bactéria é gram-negativa, que tanto pode se desenvolver em ambientes aeróbicos, quanto anaeróbicos. Sua dimensão varia entre 1,4 a 2,6 micrômetros de comprimento.

Esse agente patogênico pode ser encontrado de forma livre na natureza ou aderido a superfícies de plantas (arroz, milho, trigo etc), a algas verdes filamentosas, a zooplânctons, a crustáceos e a insetos. Fatores ambientais, como, principalmente, pH, temperatura, salinidade e concentração de nutrientes, exercem importante influência em sua interação. O “Vibrio Cholerae” é mais ativo, por exemplo, em condições que se aproximam das características naturais dos estuários dos rios. Sua provável origem, conforme os pesquisadores é o delta do Rio Ganges, na Índia, um dos mais poluídos do Planeta, dados os costumes religiosos dos hinduístas, que o consideram “sagrado” e onde os fieis se banham e depositam as cinzas de seus mortos. Reitere-se que o contágio se dá, principalmente, por via oral,  por ingestão de água ou de alimentos contaminados por dejetos fecais.

O desenvolvimento da doença é rapidíssimo e a morte pode sobrevir não em questão de dias, mas de horas. Conhecem-se casos de cólera, na Índia, desde a Idade Média. Insisto ser provável que a doença seja muito mais antiga, mas que não pôde ser identificada em passado remoto por desconhecimento do que a causava. Seu primeiro relato chegou ao Ocidente através do navegador português Vasco da Gama. Esse almirante, responsável por descobrir o caminho marítimo para a Índia, registrou, em seu diário de bordo, que em 1503, uma fulminante epidemia de diarréia, notavelmente letal, causou vinte mil mortes na cidade indiana de Calcutá. Mas a Europa só veio a ser afetada já no século XIX.

Por volta de 1810, o cólera ultrapassou as fronteiras dos países asiáticos e chegou, pelas rotas comerciais, à Rússia e ao Oriente Médio, estendendo-se, com grande rapidez, por todo o continente europeu e chegando até às Américas. A partir de 1817, sete pandemias da doença assolaram o mundo. A última, ocorrida já no século XX, ou seja, em 1961, ainda permanece ativa, causando vítimas aqui, ali e acolá. Em outubro de 2010, por exemplo, em conseqüência de fortíssimo terremoto que arrasou o Haiti, 1.500 pessoas morreram de cólera nesse país, e 23 mil foram contaminadas. A segunda epidemia da doença, originada na Índia, também entrou na Europa através da Rússia. Foi a de 1826. Passando por Moscou, Berlim (onde fez, em 1831, uma vítima famosa, o filósofo Georg Wilhelm Hegel) e as ilhas britânicas, chegou à França, onde matou pelo menos cem mil pessoas, entre as quais o rei Charles X.         


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