O cólera migrou do Oriente para o Ocidente
Pedro
J. Bondaczuk
O cólera é,
basicamente, doença do século XIX. Pelo menos foi quando ocorreram as piores
epidemias (inclusive várias pandemias) de que se tem notícia. Nenhuma, porém,
foi tão severa como as tantas pandemias de peste bubônica. Desconfio, todavia,
que a patologia seja muito mais antiga do que se pensa, mas, provavelmente pelo
fato das pessoas não conseguirem identificá-la, praticamente não há registros
anteriores à Idade Média. Admite-se que tenha surgido no Oriente e migrado para
o Ocidente. Vários escritores importantes trataram dela, posto que todos os que
selecionei sejam dos séculos XIX e XX. Antes de comentar alguns dos principais
livros que têm o cólera como foco, é indispensável “apresentar”, embora sob a
visão de um leigo, como sou, algumas características da doença, que há muitas
décadas não se manifesta (não epidemicamente) em países industrializados, mas
que ainda é onipresente em vastas regiões da África, do Sudeste asiático e em
algumas partes da América Central.
De acordo com a
Organização Mundial de Saúde, todos os anos são registrados de três a cinco
milhões de novos casos no mundo. E, em pleno século XXI – este nosso, da tão
decantada globalização – segue matando um número considerável de pessoas.
Conforme os citados dados da OMS, a quantidade de mortes causadas pela
enfermidade oscila entre 100 mil e 200 mil anuais. Onde há tratamento de água e
de esgoto, as ocorrências chegam perto de zero. Onde não há... infelizmente
milhares ainda pagam com a vida por esse descaso, eliminados por uma doença facilmente
evitável. Países industrializados, como Estados Unidos, Alemanha, França,
Inglaterra, Suécia e Suíça, entre tantos outros, não têm nenhum surto desde o
início do século XX. Já no chamado Terceiro Mundo, estes se sucedem,
periodicamente, sobretudo por falta de medidas mínimas de higiene.
E o que vem a ser o
cólera? É uma doença infectocontagiosa do intestino delgado, transmitida, na
imensa maioria dos casos, por meio de alimentos e/ou água contaminados. Seu
agente causador é uma bactéria, com formato de vírgula, batizada de “Vibrio Cholerae”.
Ele foi isolado, em 1883, pelo mesmo cientista que isolou o chamado “bacilo de
Koch” (causador da tuberculose), ou seja, Robert Koch. Esta bactéria é
gram-negativa, que tanto pode se desenvolver em ambientes aeróbicos, quanto
anaeróbicos. Sua dimensão varia entre 1,4 a 2,6 micrômetros de comprimento.
Esse agente patogênico
pode ser encontrado de forma livre na natureza ou aderido a superfícies de plantas
(arroz, milho, trigo etc), a algas verdes filamentosas, a zooplânctons, a
crustáceos e a insetos. Fatores ambientais, como, principalmente, pH,
temperatura, salinidade e concentração de nutrientes, exercem importante
influência em sua interação. O “Vibrio Cholerae” é mais ativo, por exemplo, em
condições que se aproximam das características naturais dos estuários dos rios.
Sua provável origem, conforme os pesquisadores é o delta do Rio Ganges, na
Índia, um dos mais poluídos do Planeta, dados os costumes religiosos dos
hinduístas, que o consideram “sagrado” e onde os fieis se banham e depositam as
cinzas de seus mortos. Reitere-se que o contágio se dá, principalmente, por via
oral, por ingestão de água ou de alimentos
contaminados por dejetos fecais.
O desenvolvimento da
doença é rapidíssimo e a morte pode sobrevir não em questão de dias, mas de
horas. Conhecem-se casos de cólera, na Índia, desde a Idade Média. Insisto ser
provável que a doença seja muito mais antiga, mas que não pôde ser identificada
em passado remoto por desconhecimento do que a causava. Seu primeiro relato
chegou ao Ocidente através do navegador português Vasco da Gama. Esse
almirante, responsável por descobrir o caminho marítimo para a Índia,
registrou, em seu diário de bordo, que em 1503, uma fulminante epidemia de
diarréia, notavelmente letal, causou vinte mil mortes na cidade indiana de
Calcutá. Mas a Europa só veio a ser afetada já no século XIX.
Por volta de 1810, o
cólera ultrapassou as fronteiras dos países asiáticos e chegou, pelas rotas
comerciais, à Rússia e ao Oriente Médio, estendendo-se, com grande rapidez, por
todo o continente europeu e chegando até às Américas. A partir de 1817, sete
pandemias da doença assolaram o mundo. A última, ocorrida já no século XX, ou
seja, em 1961, ainda permanece ativa, causando vítimas aqui, ali e acolá. Em
outubro de 2010, por exemplo, em conseqüência de fortíssimo terremoto que
arrasou o Haiti, 1.500 pessoas morreram de cólera nesse país, e 23 mil foram
contaminadas. A segunda epidemia da doença, originada na Índia, também entrou
na Europa através da Rússia. Foi a de 1826. Passando por Moscou, Berlim (onde
fez, em 1831, uma vítima famosa, o filósofo Georg Wilhelm Hegel) e as ilhas
britânicas, chegou à França, onde matou pelo menos cem mil pessoas, entre as
quais o rei Charles X.
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