Monday, June 06, 2016

Menção a epidemia na Ilíada de Homero


Pedro J. Bondaczuk

As epidemias – e não importa de que doenças – integram o imaginário popular desde épocas remotíssimas e imemoriais. Sempre se fizeram presentes desde que o primeiro homem talentoso, sobretudo criativo (que ninguém sabe e jamais saberá quem foi) expressou suas impressões sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre o concreto e o abstrato e, principalmente, sobre o que pensava ou sentia. Por paradoxal que pareça (e que, de fato, seja) a “criação literária” nasceu “ágrafa”. Ou seja, precedeu, e em muito (possivelmente num par de milênios) a invenção da escrita. “Mas como?!”, indagará, atônito, o leitor, diante dessa aparente contradição. Explico.

A primeira manifestação literária da humanidade  foi a poesia e necessariamente rimada e ritmada, para facilitar a memorização. E também repetitiva. Originalmente, esse hoje tão nobre gênero de Literatura tinha função muito diferente da de hoje. Era  mais abrangente. Era a única forma de uma geração passar para outra conhecimentos, experiências, descobertas e inquietações. Algumas vezes fazia o papel que cabe atualmente ao jornalismo, transmitindo notícias, passadas de boca em boca. As composições eram “decoradas” pelos jovens que, tão logo amadureciam, transmitiam o que haviam decorado aos seus filhos e estes aos seus e assim sucessivamente, mantendo vivas as experiências e a história das comunidades. Muitas dessas comunicações (embora nem se desconfie quantas e quais) foram, mais tarde, perpetuadas em textos, claro, após a invenção e consolidação da escrita.

Não é preciso ser nenhum gênio para concluir que entre a concepção original do que se transmitia e sua “versão” final após um par de anos, havia diferenças de anos-luz de tamanho. Afinal, a idéia de que “quem conta um conto, aumenta um ponto”, sempre, sempre e sempre prevaleceu (e ainda prevalece, mesmo com os recursos da escrita de que dispomos). Uma das primeiras menções literárias a uma epidemia (possivelmente de peste bubônica), foi feita pelo poeta épico da Grécia Antiga Homero. Foi logo no Canto I, o introdutório, de sua ultra conhecida e hiper divulgada epopéia “Ilíada”. Esses versos da composição citada começam com uma epidemia de peste, enviada por Apolo, sobre o exército de Agamenon em represália por ele haver raptado a filha de um de seus sacerdotes.

Homero escreve, no Canto I da “Ilíada”:

“Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orço lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mírmidon divino.

Nume há que os malquistasse?
o que o Supremo leve em Latona.
Infenso um letal morbo
No campo ateia; o povo perecia,
Só porque o rei desacatara a Crises.

Com ricos dons remir viera a filha
Aos alados baixéis, nas mãos o cetro
E a do certeiro Apolo ínfula sacra.
Ora e aos irmãos potentes mais se humilha:
‘Atridas, vós Aqueus de fina greva,
Raso o muro Priâmeo, assim regresso
Vos dêem feliz do Olimpo os moradores!
Peço a minha Criseida, eis seu resgate;
Reverentes à prole do Tonante,
Ao Longe-vibrador, soltai-me a filha’"

É certo que estes versos pecam por falta de clareza. Cético que sou (suponho que na medida certa do ceticismo que devemos cultivar), não creio que o mítico poeta tenha se expressado exatamente assim. Afinal, passaram-se séculos desde quando ele compôs sua genial epopéia, em época em que não havia escrita, transmitida, portanto, oralmente, de geração a geração, até que um primeiro escriba (que não se sabe quem foi), a registrou, e em uma linguagem desconhecida para nós, leitores do século XXI depois de Cristo.

Esse poema, portanto, teve inúmeras traduções de traduções de traduções de traduções etc.etc.etc., sabe-se lá quantas, mas certamente muitas. E certamente cada tradutor modificou, conforme seu entendimento, palavras (muitas palavras), aqui, ali e acolá, Ou será que o leitor é ingênuo de acreditar que a versão que chegou até nós é rigorosamente a que Homero escreveu? Ora, ora, ora... Claro que não é. O importante, para o assunto que estamos tratando, é que o poeta mencionou uma epidemia (provavelmente de peste). E que essa menção é a mais antiga, da doença, em Literatura. Pelo menos desconheço outra que a supere em antiguidade.

Sobre Homero há muito que se comentar e refletir. Enquanto muitos acreditem, como os gregos antigos acreditavam, que o poeta de fato existiu, que era, portanto, um indivíduo histórico, inúmeros estudiosos contemporâneos são céticos quanto à sua “existência física”. Acreditam que os poemas a ele atribuídos foram compostos por centenas de pessoas anônimas e que são a culminância de muitos séculos de histórias narradas oralmente. Um desses especialistas é o professor Martin West, que escreveu: "Homero não é o nome de um poeta histórico, mas um nome fictício ou construído". O historiador e filósofo Richard Tarnas pensa mais ou menos igual. Declarou: “Homero - independentemente da polêmica sobre sua existência histórica – foi uma personificação coletiva de toda a memória grega antiga”. Será?!!! Por pura intuição, sem nenhuma prova concreta da real existência do poeta cego, discordo dos dois especialistas. Mas... tratarei disso, com mais vagar, em outra ocasião.


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