Menção a epidemia na
Ilíada de Homero
Pedro
J. Bondaczuk
As epidemias – e não
importa de que doenças – integram o imaginário popular desde épocas
remotíssimas e imemoriais. Sempre se fizeram presentes desde que o primeiro
homem talentoso, sobretudo criativo (que ninguém sabe e jamais saberá quem foi)
expressou suas impressões sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre o concreto e o
abstrato e, principalmente, sobre o que pensava ou sentia. Por paradoxal que
pareça (e que, de fato, seja) a “criação literária” nasceu “ágrafa”. Ou seja,
precedeu, e em muito (possivelmente num par de milênios) a invenção da escrita.
“Mas como?!”, indagará, atônito, o leitor, diante dessa aparente contradição.
Explico.
A primeira manifestação
literária da humanidade foi a poesia e
necessariamente rimada e ritmada, para facilitar a memorização. E também
repetitiva. Originalmente, esse hoje tão nobre gênero de Literatura tinha
função muito diferente da de hoje. Era
mais abrangente. Era a única forma de uma geração passar para outra
conhecimentos, experiências, descobertas e inquietações. Algumas vezes fazia o
papel que cabe atualmente ao jornalismo, transmitindo notícias, passadas de
boca em boca. As composições eram “decoradas” pelos jovens que, tão logo
amadureciam, transmitiam o que haviam decorado aos seus filhos e estes aos seus
e assim sucessivamente, mantendo vivas as experiências e a história das
comunidades. Muitas dessas comunicações (embora nem se desconfie quantas e
quais) foram, mais tarde, perpetuadas em textos, claro, após a invenção e
consolidação da escrita.
Não é preciso ser
nenhum gênio para concluir que entre a concepção original do que se transmitia
e sua “versão” final após um par de anos, havia diferenças de anos-luz de
tamanho. Afinal, a idéia de que “quem conta um conto, aumenta um ponto”,
sempre, sempre e sempre prevaleceu (e ainda prevalece, mesmo com os recursos da
escrita de que dispomos). Uma das primeiras menções literárias a uma epidemia
(possivelmente de peste bubônica), foi feita pelo poeta épico da Grécia Antiga
Homero. Foi logo no Canto I, o introdutório, de sua ultra conhecida e hiper
divulgada epopéia “Ilíada”. Esses versos da composição citada começam com uma
epidemia de peste, enviada por Apolo, sobre o exército de Agamenon em
represália por ele haver raptado a filha de um de seus sacerdotes.
Homero escreve, no
Canto I da “Ilíada”:
“Canta-me, ó deusa, do
Peleio Aquiles
A ira tenaz, que,
lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orço lançou
mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães
e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em
rixa ao discordarem
O de homens chefe e o
Mírmidon divino.
Nume há que os
malquistasse?
o que o Supremo leve em
Latona.
Infenso um letal morbo
No campo ateia; o povo
perecia,
Só porque o rei
desacatara a Crises.
Com ricos dons remir
viera a filha
Aos alados baixéis, nas
mãos o cetro
E a do certeiro Apolo
ínfula sacra.
Ora e aos irmãos
potentes mais se humilha:
‘Atridas, vós Aqueus de
fina greva,
Raso o muro Priâmeo,
assim regresso
Vos dêem feliz do
Olimpo os moradores!
Peço a minha Criseida,
eis seu resgate;
Reverentes à prole do
Tonante,
Ao Longe-vibrador,
soltai-me a filha’"
É certo que estes
versos pecam por falta de clareza. Cético que sou (suponho que na medida certa
do ceticismo que devemos cultivar), não creio que o mítico poeta tenha se
expressado exatamente assim. Afinal, passaram-se séculos desde quando ele
compôs sua genial epopéia, em época em que não havia escrita, transmitida,
portanto, oralmente, de geração a geração, até que um primeiro escriba (que não
se sabe quem foi), a registrou, e em uma linguagem desconhecida para nós, leitores
do século XXI depois de Cristo.
Esse poema, portanto,
teve inúmeras traduções de traduções de traduções de traduções etc.etc.etc.,
sabe-se lá quantas, mas certamente muitas. E certamente cada tradutor
modificou, conforme seu entendimento, palavras (muitas palavras), aqui, ali e
acolá, Ou será que o leitor é ingênuo de acreditar que a versão que chegou até
nós é rigorosamente a que Homero escreveu? Ora, ora, ora... Claro que não é. O
importante, para o assunto que estamos tratando, é que o poeta mencionou uma
epidemia (provavelmente de peste). E que essa menção é a mais antiga, da
doença, em Literatura. Pelo menos desconheço outra que a supere em antiguidade.
Sobre Homero há muito
que se comentar e refletir. Enquanto muitos acreditem, como os gregos antigos
acreditavam, que o poeta de fato existiu, que era, portanto, um indivíduo
histórico, inúmeros estudiosos contemporâneos são céticos quanto à sua
“existência física”. Acreditam que os poemas a ele atribuídos foram compostos
por centenas de pessoas anônimas e que são a culminância de muitos séculos de
histórias narradas oralmente. Um desses especialistas é o professor Martin
West, que escreveu: "Homero não é o nome de um poeta histórico, mas um
nome fictício ou construído". O historiador e filósofo Richard Tarnas
pensa mais ou menos igual. Declarou: “Homero - independentemente da polêmica
sobre sua existência histórica – foi uma personificação coletiva de toda a
memória grega antiga”. Será?!!! Por pura intuição, sem nenhuma prova concreta
da real existência do poeta cego, discordo dos dois especialistas. Mas...
tratarei disso, com mais vagar, em outra ocasião.
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