Sunday, June 19, 2016

Entrevista tem toque humano


Pedro J. Bondaczuk


A entrevista coletiva concedida anteontem pelo presidente Mikhail Gorbachev, explicando as circunstâncias e o desenrolar do fracassado golpe para derrubá-lo, e o posterior pronunciamento que ele fez à televisão soviética, deram indicações mais seguras e confiáveis sobre a personalidade desse controvertido estadista do que qualquer análise feita até hoje por seus detratores ou apologistas.

Em primeiro lugar, o líder do Cremlin mostrou ser um homem emotivo. Quando falou dos riscos enfrentados por sua família e que sua esposa, Raísa, havia até ficado doente, mal conseguiu conter as lágrimas. Por sinal, esse seu aspecto humano, essa vulnerabilidade que seus detratores vêem nele, foi a característica mais mencionada, como sendo positiva, pelos que ele conquistou.

O presidente checo, Vaclav Havel, por exemplo, disse, no início de 1990, após haver conversado com Gorbachev, que percebeu nele um aguçado senso de humanidade. Foi isso, aliás, o que a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher viu, no presidente, quando o conheceu três dias antes dele se tornar o homem forte da União Soviética, ao dizer que se tratava de "um homem com quem podemos fazer negócio.

Outro ponto que ficou evidente na entrevista de anteontem foi a indisfarçável decepção, a imensa mágoa, a claríssima amargura de se sentir traído pelos que se diziam seus "amigos". Dois dos golpistas e o mentor de toda a trama eram pessoas que gozavam de sua inteira confiança, freqüentavam sua casa, ouviam suas confidências.

O engenheiro Gennady Yanayev, por exemplo, era uma figura inexpressiva do interior do país, pela qual Gorbachev lutou, com unhas e dentes, para vir a se tornar seu vice-presidente.

Sobre o ministro de Defesa, Dmitri Yazov, mesmo mostrando-se chocado com sua participação na criminosa aventura, o presidente ainda teceu elogios, tamanha era a sua admiração por ele. Disse que o marechal sempre se mostrou um homem equilibrado, sensato, que em inúmeras ocasiões conteve os "cabeças quentes".

Ficou claro, na entrevista, que o líder do Cremlin ainda mal acreditava que esse "amigo" houvesse tomado parte na intentona. Finalmente, o terceiro que privava de sua amizade e o traiu foi o presidente do Soviete Supremo, Anatoly Luckyanov, ao qual se recusou a receber em sua casa na Criméia, quando esse quis justificar sua atitude desleal.

Deve ter sido muito doloroso para o estadista a constatação de que as ambições pessoais e a sede pelo poder chegam a desumanizar as pessoas, obliterando nelas os mínimos sensos éticos, entre os quais a lealdade e a fidelidade.

Há um provérbio iidiche que diz: "Um grande golpe recebido de um estranho dói menos do que um pequeno de um amigo". Gorbachev pôde sentir a verdade desse dito popular na própria carne, nos episódios dramáticos dessa semana. Mas se é verdade que se decepcionou com a traição daqueles em que depositava irrestrita confiança, certamente se surpreendeu com o apoio recebido daqueles de quem talvez não esperasse nada. Da população soviética, em especial a russa e mais notadamente a moscovita, por exemplo.

O terceiro aspecto importante a ressaltar foi a afirmação do líder do Cremlin de que, apesar da atitude da linha dura do Partido Comunista, organizando e pondo em prática a tentativa de golpe, não vai deixar a agremiação e nem a sua liderança, mas lutará com todas as forças para a sua transformação. Politicamente, trata-se de uma atitude aparentemente equivocada. Afinal, o PC já demonstrou não ser reformável.

O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson escreveu: "Acreditar nos próprios pensamentos, acreditar que aquilo que é verdade para nós, no íntimo do coração, é verdade para todos os homens --- isso é gênio". Parece ser este o procedimento do presidente soviético em relação ao socialismo, embora tenha ressalvado que essa ideologia só pode existir se tiver o indispensável acompanhamento da democracia.

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 24 de agosto de 1991).


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