Entrevista
tem toque humano
Pedro J. Bondaczuk
A
entrevista coletiva concedida anteontem pelo presidente Mikhail Gorbachev,
explicando as circunstâncias e o desenrolar do fracassado golpe para
derrubá-lo, e o posterior pronunciamento que ele fez à televisão soviética,
deram indicações mais seguras e confiáveis sobre a personalidade desse
controvertido estadista do que qualquer análise feita até hoje por seus
detratores ou apologistas.
Em
primeiro lugar, o líder do Cremlin mostrou ser um homem emotivo. Quando falou
dos riscos enfrentados por sua família e que sua esposa, Raísa, havia até
ficado doente, mal conseguiu conter as lágrimas. Por sinal, esse seu aspecto
humano, essa vulnerabilidade que seus detratores vêem nele, foi a
característica mais mencionada, como sendo positiva, pelos que ele conquistou.
O
presidente checo, Vaclav Havel, por exemplo, disse, no início de 1990, após
haver conversado com Gorbachev, que percebeu nele um aguçado senso de
humanidade. Foi isso, aliás, o que a ex-primeira-ministra britânica Margaret
Thatcher viu, no presidente, quando o conheceu três dias antes dele se tornar o
homem forte da União Soviética, ao dizer que se tratava de "um homem com
quem podemos fazer negócio.
Outro
ponto que ficou evidente na entrevista de anteontem foi a indisfarçável
decepção, a imensa mágoa, a claríssima amargura de se sentir traído pelos que
se diziam seus "amigos". Dois dos golpistas e o mentor de toda a
trama eram pessoas que gozavam de sua inteira confiança, freqüentavam sua casa,
ouviam suas confidências.
O
engenheiro Gennady Yanayev, por exemplo, era uma figura inexpressiva do
interior do país, pela qual Gorbachev lutou, com unhas e dentes, para vir a se
tornar seu vice-presidente.
Sobre
o ministro de Defesa, Dmitri Yazov, mesmo mostrando-se chocado com sua
participação na criminosa aventura, o presidente ainda teceu elogios, tamanha
era a sua admiração por ele. Disse que o marechal sempre se mostrou um homem
equilibrado, sensato, que em inúmeras ocasiões conteve os "cabeças quentes".
Ficou
claro, na entrevista, que o líder do Cremlin ainda mal acreditava que esse
"amigo" houvesse tomado parte na intentona. Finalmente, o terceiro
que privava de sua amizade e o traiu foi o presidente do Soviete Supremo,
Anatoly Luckyanov, ao qual se recusou a receber em sua casa na Criméia, quando
esse quis justificar sua atitude desleal.
Deve
ter sido muito doloroso para o estadista a constatação de que as ambições
pessoais e a sede pelo poder chegam a desumanizar as pessoas, obliterando nelas
os mínimos sensos éticos, entre os quais a lealdade e a fidelidade.
Há
um provérbio iidiche que diz: "Um grande golpe recebido de um estranho dói
menos do que um pequeno de um amigo". Gorbachev pôde sentir a verdade
desse dito popular na própria carne, nos episódios dramáticos dessa semana. Mas
se é verdade que se decepcionou com a traição daqueles em que depositava
irrestrita confiança, certamente se surpreendeu com o apoio recebido daqueles
de quem talvez não esperasse nada. Da população soviética, em especial a russa
e mais notadamente a moscovita, por exemplo.
O
terceiro aspecto importante a ressaltar foi a afirmação do líder do Cremlin de
que, apesar da atitude da linha dura do Partido Comunista, organizando e pondo
em prática a tentativa de golpe, não vai deixar a agremiação e nem a sua
liderança, mas lutará com todas as forças para a sua transformação.
Politicamente, trata-se de uma atitude aparentemente equivocada. Afinal, o PC
já demonstrou não ser reformável.
O
filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson escreveu: "Acreditar nos
próprios pensamentos, acreditar que aquilo que é verdade para nós, no íntimo do
coração, é verdade para todos os homens --- isso é gênio". Parece ser este
o procedimento do presidente soviético em relação ao socialismo, embora tenha
ressalvado que essa ideologia só pode existir se tiver o indispensável
acompanhamento da democracia.
(Artigo
publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 24 de agosto de
1991).
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