Pedro J. Bondaczuk
A escolha de uma atividade profissional para, não somente assegurar o sustento pessoal e o da família, mas para deixar sua marca no mundo, é um dos momentos cruciais na vida de milhões de pessoas mundo afora. Poucos, infelizmente, se dão conta disso. E mais raros, ainda, são os que têm oportunidade para escolher o que fazer na vida, sem sufocar a vocação.
Na maioria dos casos, o jovem, em busca de um trabalho a exercer, é forçado pelas circunstâncias a aceitar o primeiro emprego que lhe aparecer. E isso quando aparece. Não raro, é levado a exercer atividades perigosas, repetitivas, cansativas e de baixa remuneração. O leitor, talvez num primeiro momento, sequer concorde com minha colocação, mas, se refletir só um pouquinho, concluirá que tenho razão.
Nas famílias com maior poder aquisitivo, e bem estruturadas, quase sempre a escolha da futura profissão fica por conta dos pais, às vezes sem nem mesmo consultarem os filhos, os principais interessados no caso. Nessas ocasiões e, principalmente, se vieram de camadas mais humildes da sociedade e se venceram, graças a ingentes esforços e múltiplos sacrifícios, eles sonham alto e buscam realizar em seus pimpolhos o que não conseguiram por si próprios. Aspiram carreiras de grande prestígio e boa remuneração para seus herdeiros, como as de médicos, engenheiros, administradores de empresas, advogados etc.. Mas sequer analisam se eles têm condições ou não de exercer bem essas profissões, ou seja, se têm vocação para elas. Não medem sacrifícios para custear os estudos dos filhos, nas carreiras que eles, pais, escolheram, e não os que deveriam de fato escolher.
Não raro, porém, essas pessoas não têm a menor aptidão para a atividade que a família lhes determinou. E, via de regra, fracassam nela. Tornam-se amargas, infelizes e frustradas. Pudera! E mesmo quando obtêm relativo sucesso, no íntimo, no fundo da mente, sentem, mesmo que não admitam e até neguem, que não é o que gostariam de fazer e que, supostamente, fariam bem.
Às vezes a pessoa forçada pelos pais a fazer Medicina, por exemplo, gostaria, na verdade, de ser ator (ou atriz, quando o caso). Ou o que cursa Direito, preferiria as artes plásticas. Ou o futuro engenheiro sonha em ser músico. E vai por aí afora. Privilegiados são aqueles que descobrem cedo a vocação, a desenvolvem plenamente, e têm oportunidade e apoio para exercitá-la com fervor e dedicação, como missão de vida, quer seja bem remunerada, quer não. Óbvio que poucos conseguem isso.
Esse tipo de equívoco por pouco aconteceu também com Georg Friedrich Haendel. O pai queria que ele fosse advogado. Quando jovem, ele chegou a freqüentar – por um período curto de tempo – o curso de Direito. Todavia, para sua felicidade (e dos amantes da música “eterna”), prevaleceu a vontade do rapaz. É provável que o mundo tenha sido privado de um defensor meia boca, quando muito mediano. Mas é certo que ganhou um compositor consensualmente reconhecido como dos melhores que já existiram. Mas... voltemos ao princípio, até para dar coerência a estas considerações.
Quando o cirurgião-barbeiro Georg Haendel chegou em casa, na noite de 23 de fevereiro de 1685, de volta do castelo do Duque da Baixa Saxônia, onde atendeu um doente, foi saudado, na porta, com um grito forte e sadio de um recém-nascido. Acabava de tornar-se pai pela quarta vez, a terceira com a segunda esposa, Dorotea Faust. Brincando, disse, eufórico, para os amigos que o foram cumprimentar: “Está aí um futuro cantor!”. Errou por pouco. Ao invés de um intérprete, estava ali, no berço de uma confortável casa da cidade de Halle an der Saale, na Baixa Saxônia, aquele que viria a ser, um dia, um dos mais geniais criadores de melodias e harmonias de todos os tempos.
Todavia, dependesse do velho Georg, o destino da criança seria bem outro. Estaria ligado a códigos, alfarrábios de Direito e tribunais, O avô da criança, Valentim, fora, apenas, esforçado artesão, mestre-caldeireiro. E o pai era barbeiro-cirurgião da corte ducal (naquele tempo, as cirurgias não eram tarefas de médicos). Seu maior sonho era fazer de seu pimpolho um homem de leis, um grande advogado, quem sabe um juiz. Mas o garoto, desde cedo, revelou talento precoce para outra atividade, mas ligada às artes: a música. Sempre que na rua, algum ambulante passava, tocando qualquer instrumento para atrair a clientela, o menino parava, como que hipnotizado, para ouvir. E exigia do vendedor todas as explicações sobre o instrumento que estivesse tocando. E mais, insistia para tirar dele algumas notas, mostrando-se fascinado com isso. Era óbvia a vocação do menino para a arte musical.
O pai, embora sonhando alto com o futuro do seu pimpolho, concordou em contratar um professor particular de música para o filho. Sua intenção, porém, era de que isso fosse apenas um hobby do garoto, jamais sua profissão. A determinação paterna, todavia, ficaria seriamente abalada em certo dia do ano de 1692. Foi quando o menino apresentou-se na corte, para o próprio duque da Baixa Saxônia, Johann Adolph. O futuro compositor estava, então, com apenas sete anos de idade. Mesmo assim, fez uma exibição impecável e inesquecível, tocando órgão, o que impressionou a todos. O duque, ao tomar ciência da intenção do pai de fazer daquele virtuose um advogado, passou uma descompostura em regra no velho cirurgião. E ordenou que a vontade do menino, de seguir carreira musical, fosse respeitada.
Haendel passou, então, a tomar lições com o excelente e renomado professor de órgão, Wilhelm Zachau, famoso organista da “Liebfrauerkirche”. Um professor competente sabe quando tem em mãos um talento bruto com enorme potencial. Tem uma espécie de faro natural, de sexto sentido para identificá-lo. E foi o que aconteceu com Zachau. Não tardou para o mestre envolver-se com o discípulo e projetar nele suas secretas aspirações. Decidiu, em seu íntimo, fazer daquele aluno brilhante um músico excepcional. E ensinou-lhe tudo o que conhecia. Exercitou-o em vários instrumentos, como o cravo, o oboé, o violino e, logicamente, o órgão. Aprofundou Haendel nas riquíssimas fontes musicais germânicas, mediante o estudo crítico de obras-primas. E, sobretudo, iniciou-o nos segredos da arquitetura do contraponto.
Com doze anos de idade, o adolescente Haendel seguiu para Berlim. Ali, a princesa Sofia Carlota, da casa de Hannover, havia fundado uma companhia de ópera e estava atraindo para a corte instrumentistas, cantores e compositores italianos, que gozavam de imenso (e merecido) prestígio em toda a Europa. Haendel entendeu que tomando parte nos saraus da princesa, completaria sua educação musical e passou a freqüentar assiduamente essas reuniões.
Todavia, em 1697 recebeu notícias inquietadoras de casa, dando conta de que a saúde do pai não estava nada boa. Resolveu partir para a cidade natal, para ajudar no que pudesse aquele homem generoso e bom. Não deu tempo. O pai morreu antes que Haendel chegasse. A morte daquele velho grandalhão e carrancudo, que por trás da aparência severa escondia uma benevolência e amabilidade sem limites, pegou o jovem músico de surpresa. Ela ocorreu em 11 de fevereiro de 1697, quando Haendel estava exatamente no meio do caminho, rumo a Halle. Ali mesmo, na estrada, o jovem tomou uma resolução que, por pouco, o desviou da verdadeira vocação: a música. Decidiu cumprir a última vontade do pai e preparar-se para a carreira jurídica.
Em 1702, com 17 anos de idade, Haendel ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Halle. Felizmente, a vocação prevaleceu sobre o sentimento de gratidão. E a resolução de seguir a carreira jurídica iria durar muito pouco, meses se tanto. O mundo perdeu, dessa forma, um jurista. Ganhou, todavia, um artista sublime e genial. Mas... essa é uma outra história que fica para outra vez.
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