Tuesday, December 11, 2012

Aflições antecipam fim glorioso

Pedro J. Bondaczuk

A nossa condição humana, animal – e dos fisicamente mais frágeis e vulneráveis da natureza – nos expõe a situações que fogem do nosso controle. Às vezes, num dia, estamos gozando estritamente de perfeita saúde e, quando menos esperamos, subitamente, no dia seguinte ou até na hora seguinte, algo se desarranja em nosso organismo e caímos doentes. Ou acontece o pior: morremos de repente, para surpresa e desgosto dos que nos amam. Ou enfrentamos problemas que mesmo não sendo tão definitivos, causam aflições e aborrecimentos imensos, como algum fracasso nas atividades que exercemos, ou súbita falência de nossa empresa ou alguma profunda decepção amorosa.

Todos passamos, algum dia, por essas situações extremas, alguns mais outros menos, por mais favoráveis que sejam nossas circunstâncias. Por mais positiva e benigna que possa ser nossa vida, temos que estar preparados para esses tropeços. Nunca estamos. Se soubermos nos adaptar a condições negativas e atenuarmos ao máximo seus efeitos ruins, emergiremos delas não raro fortalecidos. Isso requer serenidade, autodisciplina e muita, imensa, incomensurável força de vontade.

Nestas minhas reflexões sobre as vidas de algumas personalidades, destaquei a erosão da personalidade do escritor Edgar Allan Poe, que diante dos desgostos, recorreu ao álcool, às drogas e até tentou cometer suicídio. Nos textos anteriores, sobre o consagrado compositor Georg Friedrich Haendel, enfatizei seus êxitos. Ficou parecendo para os desavisados que ele não teve que lutar contra nenhuma circunstância ruim, que nunca ficou doente, que foi bem sucedido no amor, nos negócios, em tudo, que suas finanças foram sempre saudáveis e, por isso, jamais precisou se preocupar com dinheiro e vai por aí afora. Ledo engano.

Como todo mundo, o genial músico enfrentou situações terríveis. Mostrou, todavia, uma característica que até explica, posto que parcialmente, porque, a despeito delas, produziu tantas obras e de tamanha qualidade. Haendel enfrentou, por exemplo, a partir da maturidade e principalmente no período da velhice, sérios problemas de saúde causados, como sempre acontece com a maioria das pessoas, pelos maus hábitos de vida. Uma de suas paixões – talvez apenas menor do que a que tinha pela música – era a boa mesa. Era desses glutões de devorar sozinho quantidades de comida que empanturrariam pelo menos quatro pessoas. Por isso, era obeso.

Essa corpulência exagerada, como seria de se esperar, cobrou-lhe um preço proibitivo. É quase certo que foi a causa da apoplexia que o acometeu, em 1737, e que o deixou com meio corpo paralisado. Imaginem o drama daquele homem. Naquele tempo, a medicina estava mais para adivinhação e empirismo do que para ciência. Tudo levava a crer que o compositor estava acabado. Foi quando demonstrou o quanto era adaptável e determinado. Não se entregou à doença. Reagiu e superou por completo o problema físico com pouquíssimas, quase imperceptíveis seqüelas. É um exemplo de superação que tem que ser não somente destacado, como exaltado e imitado.

Um dos seus biógrafos (não me lembro qual), descreve assim a personalidade do “Grande Urso” (como era chamado pelos íntimos): independente, renovador, solitário e em perpétuo conflito consigo mesmo. Nesse aspecto, não diferia quase nada de Edgar Allan Poe. A diferença está em como os dois reagiam a essas características pessoais. Haendel, na função de diretor de institutos e de empresário (criou uma companhia de ópera, por volta de 1720, aproveitando o período de prosperidade econômica da Inglaterra, em decorrência da Revolução Industrial) conviveu com diversos tipos de artista. E decepcionou-se profundamente com a exacerbada vaidade da maioria deles e com o sentimento de inveja de muitos, que estavam de olho nos altos cargos que ele ocupava e no sucesso que fazia.

Uma disputa, por exemplo, entre cantores de ópera de sua companhia, opondo, de um lado, os chamados “castrati” e, de outro, os conhecidos como “prime donne”, corroia por dentro sua empresa, desgastando-a. Essa confrontação não ficava restrita aos bastidores, mas chegava às platéias, que tomavam partido. O público, em vez de apreciar as óperas, estava mais interessado na disputa. Essa situação de conflito chegou ao ponto máximo em 1726, quando duas das cantoras da ópera “Alexandre” – Faustina Bordoni e Francesca Cuzzoni – chegaram às vias de fato, se atracando e trocando tapas, protagonizando cena de pugilato, que levou a platéia ao delírio. A notícia do vexame, contudo, espalhou-se e o público, nas apresentações posteriores, foi minguando, minguando, até desaparecer de vez. Não tardou para que a companhia de ópera de Haendel fosse à falência.

É provável que esse fracasso empresarial tenha contribuído para a apoplexia do compositor. Sua pressão arterial deve ter ido às nuvens. A falência de sua empresa, é verdade, deu-se nove anos antes, em 1728, do seu AVC, ocorrido em 1737. Tanto antes, quanto depois da doença, o compositor teve que trabalhar muito (e trabalhou) para pagar as despesas e se manter, em uma fase das mais difíceis. Nesse período, trabalhava, em média, catorze horas por dia, apesar da fragilidade da saúde. É verdade que fazia o que gostava e sabia fazer bem como poucos. Mas...

Seu período de recuperação e descanso foi em uma terma, mas durou poucos meses. Voltando a Londres, aparentemente recuperado, retomou a frenética rotina, como se nada lhe houvesse acontecido. Se tem uma coisa que Haendel sabia fazer muito bem (além de criar obras-primas, claro) era aproveitar oportunidades. E em 1746, aproveitou outra, que veio a mudar toda a sua aflitiva situação. Explico. Naquele ano, rebeldes escoceses, liderados por Charles Edward, tentaram invadir Londres e tomar o poder. A cidade mobilizou-se para a defesa e o compositor uniu-se, sem titubear, aos defensores. E não somente isso, como até compôs o “Hino dos Voluntários de Londres”. E mais, quando os invasores foram contidos e derrotados, produziu “A song of victory over rebels”. Foi o que bastou para não somente recuperar, mas multiplicar a popularidade perdida. Handel havia conquistado, de vez, o coração e a mente dos ingleses.

Todavia seus problemas pessoais não acabaram. Na verdade, estavam apenas começando. Em 1753, quando trabalhava na composição do oratório “Jephtah”, eis a surpresa. Subitamente, sem nenhum aviso (pelo menos que se soubesse), Haendel ficou cego, a princípio de um olho, mas dias depois, de ambos. A cegueira foi atribuída ao excesso de trabalho. Da minha parte, da análise de uma série de evidências, creio que foi em decorrência da diabetes, hipótese que nenhum de seus biógrafos sequer chegou a cogitar. Pudera! A medicina daquele tempo era incapaz de identificar a doença.

Os seis anos seguintes da vida do “Urso Branco” (como era então chamado, depois de seus cabelos terem ficado completamente grisalhos), foram um misto de sofrimento e satisfações. O primeiro, por motivo óbvio. O segundo, em decorrência do crescente sucesso de suas composições, especialmente do oratório “O Messias”, apresentado em várias partes da Inglaterra e da Europa, com idêntica recepção de reverência e de delírio até, dependendo da platéia. Velho, doente e alquebrado, Haendel, nem mesmo assim, “entregou os pontos”. Tanto que cinco dias antes da sua morte, em 6 de abril de 1759, fez sua última apresentação pública. O teatro quase veio abaixo de tantos aplausos emocionados ao compositor, àquela altura já um mito, com muita gente chorando de emoção na platéia. Era a definitiva consagração.

No dia 10 de abril, pressentindo a morte, Haendel manifestou o desejo de morrer na Sexta-Feira Santa. Não houve tempo. Um fulminante ataque cardíaco pôs fim à sua vida, no dia seguinte, 11 de abril de 1759, aos 74 anos, em um Sábado de Aleluia. Houve comoção profunda na Inglaterra, como se quem morresse fosse o próprio rei. Pouquíssimas pessoas tiveram funeral tão pomposo e concorrido como o dele. Morria o homem (que é efêmero) e nascia o mito (que talvez seja eterno). Numa derradeira, mas suprema homenagem da pátria que adotou (e que correspondeu com grandeza a essa adoção), Georg Friedrich Haendel, o “Urso Branco”, foi enterrado na Abadia de Westminster, última morada dos reis ingleses, no “Canto dos Poetas”, onde foi erigida uma grande estátua em sua memória. Teve, pois, um final tão grandioso quanto o de seu memorável oratório “O Messias”, seu maior legado à posteridade.



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