Pedro J. Bondaczuk
O meu tão citado bloco de anotações, em que registro o que de mais pitoresco e curioso encontro nas várias biografias que li (e que leio ainda, quando possível), contém preciosos dados não apenas da vida de escritores consagrados (como Edgar Allan Poe), ou de compositores célebres (como Georg Friedrich Haendel). Minha “xeretice” vai mais longe. Envolve personalidades de outras áreas, a maioria artistas, mas não só eles. Suas trajetórias, sucessos, fracassos, amores, controvérsias etc. são dignos de reflexão e têm muito a nos ensinar.
Volto, aliás, a esse tipo de abordagem, a pedido de alguns leitores e faço-o com a maior satisfação, ressaltando (e reiterando) que essa série de textos não é (e não se propõe a ser) nenhuma biografia, mesmo que resumida. São meros coment6ários à margem, rigorosamente livres, e que me dão enorme prazer em escrever. Divirto-me fazendo isso. E, de lambuja, aprendo muitas coisas e partilho com quem esteja disposto a ler minhas descompromissadas reflexões.
Desta vez, optei por abordar aspectos da vida de um pintor. Caracterizá-lo, apenas, como tal, seria um desrespeito e até heresia. Trata-se, na verdade, de um mestre da pintura, um dos maiores de todos os tempos, cujos quadros valem uma fortuna e são acessíveis a pouquíssimos bolsos: o holandês Rembrandt Harmenzoom Van Rijn. Mesmo que se trate de surrado clichê, não tenho como classificá-lo senão como “genial”. Mas para ser preciso, não há como deixar de lado as inúmeras polêmicas em que se envolveu, das quais se pode (e se deve) extrair inúmeros ensinamentos.
Para fundamentar mais esta série de reflexões, li pelo menos quatro biografias do notável artista holandês, sendo que a mais recente foi a escrita pelo austríaco, naturalizado norte-americano, Gary Schwartz, intitulada “Rembrandt: sua vida e sua obra”. Para esclarecer algumas dúvidas, vou recorrer, sempre que necessário, à providencial “Wikipédia” e talvez a outras fontes que, se o fizer, terei o cuidado de citar.
Uma das minhas maiores frustrações é a de não ter talento para todas as artes. Gostaria, por exemplo, de ser capaz de compor música erudita ou, na pior das hipóteses, de ser hábil na execução de algum instrumento musical. Não tenho, contudo, para minha suprema humilhação, talento para nada disso. Outra arte que aprecio demais, estudo a fundo e da qual já fui, até, crítico num dos jornais que trabalhei, é a pintura. Minha inabilidade manual, no entanto, é tão catastrófica, que não consigo desenhar absolutamente nada que seja minimamente identificável. Resta-me o consolo de ser este projeto de escritor que sou (costumo me tratar por “escrevinhador”, com conotações ora pejorativas ora até carinhosas, dependendo das circunstâncias). Que remédio!
Bem, chega de enrolação. Vamos ao que interessa. Mas antes de abordar aspectos, digamos, pitorescos da vida de Rembrandt, vou tratar, por um dia ou dois, de uma de suas principais, mais apreciadas (e mais caras) obras de arte: o quadro “Aristóteles contemplando o busto de Homero”. Wikipédia informa que essa tela, medindo 143,5 centímetros x 136,5 centímetros, foi pintada em 1653. É a primeira pintura de um tríptico envolvendo personalidades da Grécia Antiga. Aliás, envolvendo apenas três. A segunda tela da série foi dedicada, apenas, a Alexandre Magno, que foi discípulo de Aristóteles. A terceira, como se pode deduzir facilmente, “retratou” como Rembrandt imaginava que fosse o mítico autor da “Ilíada” e “Odisséia”, Homero, que mesmo cego, legou à humanidade essas duas geniais epopéias.
E por que focalizo minha atenção especificamente no quadro “Aristóteles contemplando o busto de Homero” (que se conserva no Museu Metropolitano de Arte de Nova York após passar por várias mãos)? Porque ela tem toda uma história de sucessivas mudanças de dono, ora dando lucro a quem a vendeu, ora trazendo-lhe prejuízos.Mas vamos por parte.
Há mais de meio século, mais especificamente em 24 de novembro de 1961, essa tão bem cotada pintura foi adquirida, num célebre leilão (classificado, então, como o maior do mundo envolvendo obras de arte) levado a efeito pelo Museu Metropolitano de Arte de Nova York, pela astronômica cifra de US$ 2,3 milhões, com fundos fornecidos por um grupo de capitalistas norte-americanos. É verdade que esta quantia viria a ser superada, e em muito, por outras preciosidades artísticas. “Os girassóis”, de Vincent van Gogh, por exemplo, foi comprado por um colecionador japonês por quantia quase 30 vezes superior a essa. Mas, na época, a tela de Rembrandt estabeleceu recorde.
A obra em questão pertencia, na oportunidade, ao casal Alfred W. Erickson. Tratava-se do fundador da agência de publicidade que levava o seu nome, posteriormente fundida à firma K. McCann Co., originando a mundialmente conhecida empresa publicitária McCann-Erickson Inc. O leilão, um dos maiores acontecimentos sociais da década de 60 do século passado, foi realizado na Galeria Parke-Bennett, localizada na ultra sofisticada Avenida Madison de Nova York.
O quadro estava em poder do milionário desde 1928, quando ele o adquiriu do negociante de arte holandês Joseph Duveen, por US$ 750 mil. Na crise de 1929, que sucedeu ao “crash” na Bolsa de Valores de Nova York, Erickson desfez-se da obra, vendendo-a ao mesmo marchand de quem a havia comprado um ano antes. Claro que perdeu dinheiro. Teve um prejuízo de US$ 250 mil na transação, ou seja, entregou o precioso “Aristóteles contemplando o busto de Homero” por US$ 500 mil. Contudo, em 1936 o milionário voltou à carga e pagou US$ 590 mil para se tornar proprietário dessa rara preciosidade.
Leilões, envolvendo cifras tão altas, ao contrário do que o leigo possa supor, demoram, via de regra, poucos minutos. Este, de 1961, durou apenas quatro! Como costuma acontecer nesse mundo refinado de abastados colecionadores e agentes de museus, os lances se processaram de maneira discretíssima e até imperceptível para os não iniciados. Foram feitos ora através uma mordida em um toco de lápis, ora por meio de uma ligeira piscadela, ora por levíssima carícia na lapela do paletó, quando não em um suave movimento de abrir e fechar de um estojo de óculos. Quase sempre, esses sinais feitos, nesses autênticos jogos de pôquer, são percebidos, apenas, pelos sagazes e treinados leiloeiros.
“Aristóteles contemplando o busto de Homero” foi pintado por Rembrandt por encomenda do nobre siciliano Antonio Ruffo, com quem o artista teve um desentendimento acerca do preço exorbitante que cobrou pelo quadro, de 500 florins (US$ 7,6 mil). Aliás, essa supervalorização das suas pinturas era uma característica do pintor holandês, cujo caráter nem sempre se mostrou digno de admiração e elogios, pelo menos não como suas pinturas. Com o mesmo Ruffo, Rembrandt protagonizou um episódio que ilustra sua arrogância e indelicadeza (para dizer o de menos).
O nobre de Messina encomendou uma série de quadros , sem combinar, previamente, o preço, ao temperamental artista holandês. Isso ocorreu por volta de 1656. Ao receber as telas, junto com uma conta estratosférica, Ruffo notou um defeito em uma das pinturas e devolveu-a ao artista, para que a consertasse. Tinha direito de exigir. Pelo preço cobrado, a encomenda tinha que ser perfeita. E não era. Rembrandt, todavia, simplesmente devolveu o quadro defeituoso ao nobre siciliano, argumentando que o cliente era ignorante em termos de arte, que não escolheu o ângulo apropriado para apreciar a pintura. E foi ainda mais longe: cobrou um extra de 150 florins apenas pela explicação que teve que dar a respeito, ou seja, pela “consultoria”.
Um tempinho depois, escreveu uma carta ao mesmo colecionador, bastante indelicada, dizendo que o incidente provava que “em Messina não havia conhecedores de Arte”. Quem foi, afinal, esse Rembrandt tão atrevido (ou autoconfiante?), cujos quadros, passados quase quatro séculos da sua morte, alcançam cotações astronômicas e que apenas grandes museus mundiais ou multimilionários têm condições de ostentar? Foi gênio ou impostor? Foi um artista injustiçado pelas pessoas do seu tempo, ou um tremendo trapaceiro, como seus inimigos (e teve muitos) asseguravam? Como fazer esse tipo de julgamento com a devida isenção? E é preciso?
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