Pedro J. Bondaczuk
As circunstâncias ditam nossos passos na vida. Não raro, arruínam todos nossos planos e resoluções e nos forçam a seguir rumo bem diverso do pretendido. Volta e meia, somos induzidos a adiar a busca da concretização de sonhos ou, até mesmo, a abandoná-la de vez, dada a impossibilidade de alcançá-los. É certo que nem sempre as circunstâncias são negativas. Muitas vezes nos presenteiam com inesperadas oportunidades que, se aproveitadas, nos levam a situações muito mais favoráveis do que sonhávamos ou planejávamos.
O filósofo espanhol José Ortega y Gassett escreveu memorável ensaio a esse propósito. Partiu da premissa que cada homem, além das características pessoais que tem, inatas, conta com suas próprias circunstâncias. Se negativas, convém que lute contra elas e as supere, se quiser atingir as metas a que se propõe. Muitos têm sucesso em reverter situações adversas e se realizam. A maioria, contudo, submete-se a elas e não consegue sair do lugar. São inteligentes, por exemplo, mas faltam-lhes oportunidades para estudar. São habilidosas, mas não conseguem, por mais que procurem, ocupações em que possam exercer plenamente suas habilidades. E há uma infinidade de outras circunstâncias negativas contra as quais sem tem que lutar.
Os que lutam, às vezes (não raro) conseguem reverter as expectativas negativas. Muitas vezes, porém, não conseguem a reversão, mas ainda assim, certamente, melhoram sua situação se comparados aos que simplesmente se submetem bovinamente a elas. Esse é um tema dos mais amplos e complexos que requer estudo muito mais aprofundado do que esta minha tão superficial e breve abordagem.
E por que o trago à baila, nesta série de reflexões a propósito de biografias de personalidades das artes (no caso específico, a de Georg Friedrich Haendel)? Porque as circunstâncias foram, em sua maioria, favoráveis na vida do célebre compositor, favorecendo-o na concretização dos seus planos e sonhos. Ele aproveitou as que lhe eram benignas e soube reverter muitas das negativas. Chegando, por conseqüência, onde queria chegar. Aliás, ouso afirmar que foi muito além do que pretendia. Alcançou a glória do reconhecimento do seu talento, que soube identificar a tempo e desenvolver quase ao limite da excelência.
Querem um exemplo da interferência das circunstâncias na vida de Haendel, que mudou seus rumos? Quando seu pai morreu, o então jovem compositor (estava com 17 anos), resolveu atender a última vontade do velho barbeiro-cirurgião, que sonhava em vê-lo seguindo a carreira jurídica, embora não fosse essa sua vocação e sua vontade. Chegou, mesmo, a matricular-se na Universidade de Halle, sua cidade natal. Todavia, esbarrou num poderoso obstáculo: a falta de dinheiro para custear o curso. Isso deu-lhe o pretexto para ministrar aulas de música, para se sustentar e pagar a faculdade.
Todavia, o número de alunos aumentou de tal sorte, que chegou um momento dele se decidir, por não conseguir conciliar as duas atividades: ou seguia lecionando, o que vinha fazendo com inegável sucesso, e abandonava os estudos, ou abria mão das aulas para continuar estudando, mas sem ter dinheiro para tal; Você, caro leitor, no lugar de Haendel, o que escolheria fazer? Pois é, a sua provável escolha foi também a do compositor. As circunstâncias induziram-no (ou lhe deram o pretexto que precisava) a jogar uma incerta carreira jurídica para o alto e a dedicar todo o seu tempo e suas energias ao o que gostava e sabia fazer como poucos: a música. Dessa forma sua consciência permaneceria em paz, por não atender às última vontade do pai, e poderia seguir o caminho que seu coração tanto ansiava.
Haendel era, aos 17 anos, um rapagão alto, encorpado e de porte atacarracado, o que lhe valeu o apelido de “Grande Urso”. Era todo desengonçado, embora de rosto longo, simpático e de testa larga (para muitos, indicação de inteligência). Aparentava uma calma e circunspecção, contudo, que não condiziam com sua personalidade. O moço era alegre, expansivo e bem-humorado. Era o tipo de pessoa que todos querem como amigo.
Em 1703, decidiu deixar de vez sua cidadezinha natal, que não lhe proporcionava muitas oportunidades, para se aventurar em uma metrópole agitada e culturalmente avançada, como era então (e é hoje, claro) a cidade de Hamburgo. Nesse mesmo ano, foi admitido na então já célebre orquestra da ópera local, como segundo violino. Foi o primeiro grande passo para a brilhante carreira que fez.
A outra circunstância favorável, que Haendel soube aproveitar muito bem, foi o fato de ter conhecido o maestro e compositor Reinhard Keiser, então já consagrado na Alemanha e em várias partes da Europa, autor de muitas óperas famosas e de sucesso. Ele era o regente da orquestra e influenciou decisivamente o jovem músico. Mas a amizade mais duradoura e preciosa que Haendel fez em Hamburgo foi com o irriquieto Johann Maltheson que, mesmo havendo colado grau como advogado, não exercia essa profissão e se dedicava, de corpo e alma, à música, tanto como crítico musical, quanto como instrumentista de superior talento. Por gozar de grande prestígio, ele introduziu seu jovem amigo no meio artístico local, o que lhe foi de grande valia. Mais uma vez, as circunstâncias favoráveis se fizeram presentes na vida do jovem sonhador.
Nesse mesmo ano, o de 1703, Haendel e Maltheson decidiram ir a Lübeck, onde um dos organistas de maior prestígio da Alemanha, Dietrich Buxtehude, estava se apresentando, com imenso sucesso. Este mestre estava prestes a aposentar-se e os dois jovens, esbanjando talento e cheios de ambição, mas em busca, ainda, de oportunidades, viram nisso uma chance de ouro de substituí-lo. Todavia, havia um obstáculo a transpor. A tradição local (um tanto estranha, admita-se) era a de que o novo organista de Lübeck deveria se casar com a filha do antecessor.
”Qual o problema?”, talvez pergunte, intrigado, o leitor, sabendo que tanto Haendel, quanto Maltheson, eram solteiros. Acontece que a feiúra da filha de Buxteehude era constrangedora. O crítico musical descartou, de pronto, qualquer possibilidade de casamento. Haendel ainda considerou essa hipótese. Mas a falta de atributos físicos da donzela fez com que desistisse de vez da idéia. Neste caso, as circunstâncias foram negativas e o futuramente célebre compositor resolveu abrir mão dessa oportunidade, dado o preço que teria que pagar.
Frustrados, os jovens amigos decidiram regressar a Hamburgo. E essa volta foi providencial. Foi nessa cidade, em 1704, que Haendel compôs e apresentou a “Paixão Segundo São João”. Essa obra, se causou satisfação ao compositor, foi, por seu turno, causa do estremecimento da amizade entre os dois jovens. Mais do que isso, os dois passaram a ser terríveis adversários, a ponto de chegarem a se bater em duelo de espada.
Ocorre que Haendel se inspirou em um poema de Postel para compor a referida peça. Maltheson, porém, criticou acerbamente a composição, vendo nela todos os defeitos possíveis e imagináveis. Essa crítica tão dura irritou muito o autor, que a considerou maldosa e despropositada. Dessa forma, de amigos íntimos, o relacionamento entre os dois passou a ser de franca hostilidade, de explícita inimizade, com ambos trocando insultos e mais insultos. O mútuo sentimento hostil evoluiu tanto a ponto dos brigões decidirem resolver suas diferenças como os cavalheiros de então faziam. Ou seja, de espadas na mão.
O duelo foi marcado para o dia 5 de dezembro de 1704. Foi então que outra circunstância benigna atuou em favor de Haendel, salvando, provavelmente, sua vida. Maltheson, a certa altura da luta, aplicou um golpe tão certeiro contra o compositor que poderia feri-lo mortalmente. Não feriu. A forte estocada chocou-se com um botão metálico do casaco de Haendel e a espada do adversário partiu-se ao meio. O jovem compositor poderia tirar partido do providencial (para ele) incidente e ter ferido mortalmente o ex-amigo. Não tirou. Recusou-se a ferir o adversário desarmado.
A esta altura, o maestro Reinhard Keiser resolveu intervir e pôr fim à desavença entre os briguentos. Assim, os dois se reconciliaram e até atuaram juntos, como parceiros, na composição da ópera “Almira”, vitoriosamente estreada em Hamburgo em 8 de janeiro de 1705, exatos 34 dias após seu duelo. Nesse mesmo ano, outra composição de Haendel seria apresentada, com sucesso, aos privilegiados hamburgueses. Foi a ópera “Nero”, muito aplaudida e inspirada, como o nome sugere, na vida do desequilibrado imperador romano. Viram quantas circunstâncias interferiram na trajetória de Haendel? E houve muitas, muitíssimas outras, que deixo, todavia, para abordar em outra oportunidade.
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