Thursday, December 27, 2012

A tragédia de Bhopal

* Pedro J. Bondaczuk

Entre as imagens chocantes que o ano de 1984 nos reservou, uma, que foi mostrada anteontem pela televisão, certamente ficará marcada na memória de muita gente, por longo tempo. As câmeras de TV, em sua crueza (consentânea com a verdade que devem mostrar) exibiram um senhor idoso, na cidade indiana de Bhopal, segurando no colo o cadáver de seu netinho de menos de um ano de idade, morto pelo vazamento do gás metilisocinato dos tanques da empresa multinacional Union Carbide.

Atônito, com um indescritível desespero estampado em seu rosto, os ralos cabelos grisalhos em desalinho, o ancião ergueu para os céus o seu olhar e deixou brotar toda a terrível emoção que o dominava: "O que aconteceu com você, meu pequeno? O que aconteceu?"

Essa mesma pergunta, talvez de forma não tão dramática (mas em alguns casos, até mesmo mais enfática), parentes de cerca de duas mil vítimas fatais certamente estão fazendo hoje. E também a faz os milhares de sobreviventes do acidente, que cegos e asfixiados, ainda perambulavam em estado de choque pelas ruas de Bhopal. Quem são os culpados por tamanha tragédia? Serão apurados? O que farão para indenizar as pessoas que tiveram feridos seus mais fundamentais direitos, ou seja à vida e à segurança pessoal?

Responsáveis há muitos. O que é contestável é se eles serão apontados ou se alguma providência prática será tomada para evitar a repetição de ocorrências dessa espécie. Que aliás, não é a primeira, todos sabem.

Várias perguntas ficam ainda no ar, formuladas pela opinião pública, e que certamente deixarão de ser respondidas. Em primeiro lugar, quem foi o imprudente (ou criminoso) que autorizou a instalação de uma indústria de tamanho risco numa cidade de 800 mil habitantes? qual o irresponsável que, sabendo que outros vazamentos menores haviam acontecido, não exigiu uma fiscalização rigorosa nas instalações? Por qual razão a pressão nos tanques de metilisocinato subiu a níveis tão elevados, sem que fosse contida? A empresa não tem esquema de prevenção para tais eventualidades? Se possui, por que ele não foi acionado? Qual a razão do governo indiano ter dado títulos de propriedade aos favelados que residem em torno da fábrica há apenas quatro meses atrás, se havia tamanho risco para a integridade física dessas pessoas?

São questões que certamente cairão no vazio e se algum responsável pela ocorrência for encontrado, não resta dúvida de que este será o mais fraco. Que a culpa recairá sobre algum operário humilde e indefeso, ou qualquer chefe de segundo ou terceiro escalão. Enquanto isso, muitos dos 50 mil atingidos pelos efeitos do gás continuarão morrendo, provavelmente esquecidos e entregues à própria sorte, depois que todo esse barulho inicial passar. Afinal, não é assim que as coisas sempre acontecem?

Outros ficarão para sempre mutilados, cegos alguns, paralíticos outros tantos e os demais com irreversíveis desordens neurológicas. Restará para o futuro, se restar, apenas a imagem chocante do ancião, tentando se fazer ouvido, inutilmente, pelo netinho morto: "O que aconteceu com você, meu pequeno? O que aconteceu?" O que aconteceu ao ser humano, perguntamos nós, bestializado pelo vazio ideal de ajuntar efêmeros e passageiros bens materiais?

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 7 de dezembro de 1984, que por problemas técnicos não teve a minha assinatura)

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