Desnudando o mito
Pedro J. Bondaczuk
A sabedoria popular cunhou uma expressão, constante, inclusive, da letra de famosa composição da MPB interpretada pelo saudoso Ataúlfo Alves, que diz: “morre o homem, fica a fama”. Ela pode (na verdade, deve) nos servir de alerta para que não venhamos a cometer deslizes de conduta, principalmente se formos figuras públicas, com certa projeção. Não raro alguma tolice da juventude, que julgávamos que seria esquecida, vem à tona, anos depois, e às vezes mancha nossa reputação, construída com ingentes sacrifícios. Pior, ainda, quando isso ocorre após nossa morte, quando não podemos nos defender e, claro, nos justificar.
Tenho muita cautela, pois, quando trato de biografias e dou de cara com bobagens atribuídas ou supostamente cometidas pelos biografados. Na maior parte das vezes, não dou a menor importância a esses relatos e concentro a atenção no que essas personalidades legaram de bom, à posteridade. E, quando eventualmente menciono esses “escorregões” morais, faço-o com cautela e objetivo, sempre, extrair alguma lição positiva disso. Bem, essa é minha intenção. Só que, de bem intencionados... o inferno está repleto. Às vezes menciono fatos negativos da vida de determinado artista com uma finalidade, mas o efeito acaba sendo outro.
Mas, antes de ser escritor, fui e sou jornalista, comprometido, portanto, com informação. Daí sentir-me obrigado a passar adiante, divulgando-a, aquela que chega ao meu conhecimento, posto que com cautela e responsabilidade. Por isso, os fatos negativos que venha a citar nestas reflexões, a propósito do pintor Rembrandt Harmenzoon Van Rijn, não têm a finalidade de deslustrar sua imagem e, por conseqüência, conquistar leitores pelo expediente que tanto condeno: o do sensacionalismo e do escândalo. O objetivo é o de ser fiel na descrição do personagem, ou seja, de como era o homem, não só o artista, dentro e fora do seu atelier, em casa, na rua, enfim, na sua forma de viver.
Um escritor norte-americano, naturalizado holandês, Gary Schwartz, causou sensação nos meios artísticos, em 1984, com seu livro “Rembrandt: sua vida e sua pintura”, em que traça um perfil muito diferente do mestre do estilo claro-escuro que havia a seu respeito até então. Apresenta um homem antipático, irascível, desonesto, perdulário, infiel aos parentes e amigos e adúltero. Ou seja, traz a público imagem diametralmente oposta à que outros biógrafos haviam traçado.
Por favor, não confundam esse Gary Schwartz, escritor, com outros dois de seus ilustres homônimos (um deles parapsicólogo, professor de psicologia, medicina, neurologia, psiquiatria e cirurgia, ex-diretor do Laboratório de Sistemas de Energia Humana e outro famoso ator de cinema, que protagonizou, entre tasntos filmes, “O estranho mundo de Jack”). Eu também me confundi com esse biógrafo. Escrevi, em texto anterior, que ele era austríaco, naturalizado norte-americano. Obviamente me enganei. Na verdade, ele nasceu nos Estados Unidos e adotou a cidadania holandesa.
A biografia que citei, de autoria desse não tão ilustre escritor, é um grosso volume de 380 páginas, com mais de 400 ilustrações. Seu diferencial, porém, é que ele mostra a outra face de Rembrandt, encoberta pelo tempo e esquecimento. Gary foi a Amsterdam, em 1965, para completar seu curso de pós-graduação em História da Arte. Com duas semanas de permanência na Holanda, decidiu estender por mais tempo essa experiência, fascinado com o que descobriu a respeito de Rembrandt, cujo conhecimento, até então, se baseava, apenas, nos quadros, gravuras e desenhos do pintor, pouco sabendo de sua personalidade e comportamento.
Ao cabo de 44 meses de residência no fascinante país dos diques e dos moinhos, decidiu naturalizar-se, estabelecendo-se, em definitivo, no vilarejo de Maarssen, no centro do território holandês. Em 1977, diante do imenso volume de informações que havia reunido sobre o ilustre mestre do retratismo, e animado pela esposa, Loekie, Schwartz resolveu transformar aquilo tudo em livro. Arregaçou as mangas e empenhou-se na tarefa, por quase um ano, com jornadas contínuas de 14 horas diárias de trabalho, para redigir a tal da biografia.
Em entrevista concedida em 1985, o escritor explicou o que o motivou a encarar tarefa dessa envergadura, abordando, sobretudo, aspectos polêmicos da vida de Rembrandt, artista até então impoluto, tido e havido como intocável, uma espécie de “monstro sagrado” das artes, e não somente na Holanda, mas em todos os importantes centros culturais e artísticos do mundo.
“Até a extraordinária publicidade levantada em torno de Rembrandt, no ano de 1960, oportunidade em que foram lembrados os 300 anos de sua morte, apenas estudos especializados e voltados exclusivamente para a sua técnica foram publicados. Nenhuma, ou muito pouca referência havia sobre a figura humana, o indivíduo”, afirmou Schwartz. “Esse aspecto, até mítico, do artista, impedia que sua obra fosse corretamente avaliada, pelo lado da motivação que a havia inspirado. Meu livro completa o trabalho dos outros biógrafos de Rembrandt, sem repetir nada e, principalmente, sem repisar aquilo que eles haviam analisado fartamente”, acrescentou.
“Os historiadores de arte tradicionais tomam a obra em si mesmo, estudando-a sob o aspecto técnico, buscando ressaltar apenas o formal, sem maiores preocupações com o lugar em que ela foi produzida e, por exemplo, em que mundo ela surgiu”, arrematou Schwartz. Seu livro, nem é preciso dizer, foi retumbante sucesso editorial, principalmente na Europa. Esgotou, antes mesmo do lançamento oficial, toda a primeira edição, de alguns milhares de exemplares. Pergunto, cá com os meus botões: até que ponto esse sucesso editorial se deveu à qualidade e exatidão do livro ou ao prazer mórbido do público por escândalos? Afinal a biografia, sobre a qual tratarei com mais vagar em ocasião oportuna, desmistifica a imagem que até então se fazia (e que ainda se faz, pois nem todos tiveram a oportunidade de lê-lo) sobre a mítica figura de Rembrandt. É válida essa atitude de Schwartz? Cada um que responda para si mesmo.
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