Vocação
e coragem
Pedro
J. Bondaczuk
A questão de “vocação”
para determinada atividade é muito comentada, mas quase nunca bem
entendida. É certo que temos capacidade para aprender, e executar
bem, muitas coisas, das mais diversas naturezas: manuais, artísticas,
intelectuais etc. Mas há algumas que, por razões não bem
explicadas (ou talvez inexplicáveis) aprendemos e executamos melhor
do que outras. É a isso, a essa facilidade, originada pelo gosto,
pelo interesse e pela consequente aplicação, que chamam,
genericamente, de “vocação”.
A experiência me mostrou que
nem tudo o que gostamos temos a capacidade de fazer bem. Por exemplo,
gosto muito de música, mas sou rigorosamente incapaz de tocar
qualquer instrumento, mesmo o mais simples deles. No outro extremo,
também aprendi que muita coisa que não apreciamos e que, até
mesmo, detestamos, quando premidos pelas circunstâncias, sobretudo
pela necessidade, somos capazes de fazer de forma mais do que
adequada: excelente.
Não raro fracassamos no que
gostamos de fazer e que, por causa desse gosto, nos aprimoramos para
executar bem. Muitas vezes, os resultados finais das nossas ações
se mostram pífios, quando não desastrosos. Por uma série de
motivos ou circunstâncias, como falta de persistência ou, até
mesmo, por incompetência para tal atividade, fracassamos no que
julgávamos ter inequívoca vocação. Gostar de algo não significa,
automaticamente, ser competente para sua execução. Muita gente
discorda dessa afirmação e só se convence que isso é possível de
acontecer (e, creiam-me, acontece com maior frequência do que se
supõe), quando passa por essa frustrante (e traumatizante)
experiência.
Outro aspecto a considerar é
o que se entende por “sucesso”. É ganhar muito dinheiro com o
que se faz? Para muitos (diria que para a maioria) é. Há, porém,
quem se sinta bem-sucedido com o mero reconhecimento da perfeição
do que faz, mesmo que tardio e não representado necessariamente por
vantagens materiais. Há muitos idealistas que pensam dessa maneira.
Para estes, “sucesso” é a convicção íntima de que aquilo que
fizeram foi bom, foi útil, foi bem feito e trouxe benefícios à
coletividade, a milhares, quiçá a milhões de pessoas gerações
afora.
A esse propósito, recorro a
uma observação que li há algum tempo no livro “A prayer for Owen
Meany”, a sétima novela do escritor norte-americano John Irving,
que afirmou: “Se você tiver a sorte de encontrar um meio de vida
de que goste, precisará ter a coragem para vivê-la”. Nem todos
(diria que raros) têm. Não é fácil você jogar tudo para o alto,
abrir mão de uma atividade que lhe proporcione estabilidade
financeira, prestígio e/ou “status” social mas de que não goste
para correr atrás de simples sonho, por mais grandioso que este
seja. Mas há quem faça isso. Os que fazem essa opção se sentem
realizados e felizes? Sei lá! Talvez sim, talvez não.
Querem um exemplo de alguém
que agiu dessa maneira? Foi o pintor francês Paul Gauguin, expoente
das artes plásticas do chamado “pós-impressionismo”.
Ressalte-se que suas telas, hoje, obtêm cotação astronômica no
mercado das artes . São inacessíveis à maioria dos bolsos. Valem
fortunas e quem detém esse patrimônio não quer se desfazer dele
por nada, a menos que lhe paguem somas absurdamente altas. Mesmo
assim... E muitos pagam ou estão dispostos a pagar fortunas por
elas. Todavia, nem sempre foi assim.
Esse artista talentoso e, mais
do que isso, genial, ousou dar o passo citado por John Irving, ou
seja, teve a “coragem” de jogar tudo para o alto para fazer o que
gostava, para seguir seu impulso, para ir atrás do seu sonho. Após
uma série de peripécias, que o levaram ao Peru, na juventude,
regressou a Paris e parecia ter se “assentado” na vida. Quando
tinha por volta de 33 anos, arranjou um bom emprego, como corretor na
bolsa de valores parisiense, casou-se aos 35 com a jovem dinamarquesa
Mette Sophie Gad (com quem teve cinco filhos) e tinha situação
econômica e social estável, diria excelente. Era, certamente,
invejado por muitos.
Porém, não se sentia
satisfeito. O que fazia não era o que gostaria de fazer. Queria
porque queria seguir o que entendia ser sua “vocação”, a
pintura, mas não tinha coragem de dar passo decisivo nessa direção.
Certo dia, no entanto, para desgosto da esposa (da qual viria a se
separar), jogou, sem pestanejar, tudo para o alto. Abriu mão do
emprego estável, da boa casa que tinha, do conforto de que gozava e
da posição social que havia conquistado, para se dedicar
completamente à pintura. Foi uma decisão, do ponto de vista
material, maluca, incompreensível, desastrosa.
Os quadros que produzia –
que hoje valem milhões de dólares, reitero – não tinham nenhuma
saída. Ninguém os queria. Sua arte era ridicularizada. Não tardou
para que caísse na miséria e passasse a levar vida de indigência,
desregrada e boêmia. Findou por morrer, vítima de sífilis,
abandonado e esquecido, aos 55 anos de idade, na perdida ilhota de
Iva Oa, uma das Ilhas Marquesas, no Oceano Pacífico. É verdade que
a posteridade lhe fez justiça. Mas... valeu a pena? Para alguns,
sim. Para a maioria...
E você, o que acha? Você
teria a coragem de fazer como Gauguin, jogando tudo o que conquistou
para o alto, para correr atrás de um sonho? Quem age, como ele,
aposta na imortalidade da memória, na esperança de que a obra que
deixar (se ou quando deixar) será amplamente reconhecida, mesmo que
muitos anos depois da sua morte. Às vezes (raramente), de fato,
obtém esse reconhecimento. Mas, na maioria dos casos... Suas obras
são ignoradas e desaparecem, como quem ousa tomar uma decisão,
digamos, imprudente (para sermos delicados) como a do pintor francês.
Por que? Como explicar ou
justificar? Suas obras, talvez, tenham utilidade sim, ou despertem,
mesmo, interesse, mas apenas por poucos anos, quando não meses após
serem elaboradas. Por isso, talvez sejam escassamente duráveis ou
até mesmo perecíveis. Poucas são tão importantes a ponto de
sobreviverem a uma única geração. O escritor australiano, Morris
West, no romance “O Advogado do Diabo”, tratou desse aspecto,
dessa efemeridade do que legamos ao mundo (isso, quando legamos).
É uma reflexão amarga, que
não gostaria de fazer, mas que é a pura expressão da realidade. O
romancista escreveu: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E
quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que
um homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se
desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros
homens pensam, sentem e creem da mesma maneira”. Há casos, raros,
em que a obra sobrevive e quem a elaborou é lembrado e, muito
raramente, até exaltado. Esta, todavia, convenhamos, não é a
regra. É mera exceção. Vale a pena arriscar o certo pelo incerto
por um resultado tão pífio e instável?
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