Isso se aprende no colégio?
Pedro J. Bondaczuk
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Muito oportuna, pertinente e, sobretudo inteligente a coluna de
Urariano Mota, publicada, se não me engano em 2011 (aliás, como
tudo o que esse artista do texto escreve) em que aborda um tema
original (como sempre), algo que começa a virar moda entre nós, e
que tende a trazer desgostos e frustrações futuras aos incautos que
venham a cair nesse logro: as tais Escolas de Escritores. Pouca
coisa, na verdade nada, tenho a acrescentar a esse texto, que me
suscita inúmeras reflexões, algumas das quais peço licença para
partilhar com vocês.
Penso, em relação à literatura (e a experiência de anos de janela
me comprova que estou certo) o que Noel Rosa, por exemplo, pensava em
relação ao samba: “não se aprende no colégio”. O imortal
compositor carioca deixou isso expresso com singeleza, mas com
clareza, nessa peça marcante e única do cancioneiro popular
brasileiro (tão rico e fantástico) que é “Feitio de oração”.
Em determinado trecho da letra, ele afirma peremptoriamente:
“Batuque é um privilégio
ninguém aprende samba no colégio...”.
Bem, literatura, no que se refere à teoria, à análise crítica, à
sua história etc., se aprende, na verdade, nas escolas. Isso é um
fato. Mas há quem consiga a “mágica” de tornar alguém, com
meia dúzia de aulas (ou até com um milhão delas), um escritor, na
lídima expressão do termo? Duvido! A exemplo de samba, isso também
não se aprende no colégio. Só tem uma escola que “talvez” (e
notem bem, que coloquei essa palavra de propósito entre aspas, por
não se tratar de nenhuma certeza) possa funcionar: a da vida.
Nem todo o sujeito que se vale da palavra escrita para expressar
ideias, emoções e sentimentos, ou afetos e desafetos, ou desespero
e esperança ou etc.etc.etc. é, rigorosamente, escritor. Pode até
escrever bons livros, e em profusão, tornar-se, num piscar de olhos,
best-seller, e ainda assim não poder ostentar com legitimidade essa
condição. Jamais será um Balzac, um Baudelaire, um Hugo, um
Dostoievski, um Machado de Assis ou tantos e tantos e tantos outros
gênios das letras.
Se não tiver aquela chama interior, indefinível, mas concreta; se
não tiver paixão pelo que faz; se não for sincero e verdadeiro,
sobretudo consigo mesmo, pode ser até redator de primeiríssima
qualidade, jornalista de múltiplos recursos, economista, filósofo,
filólogo ou os diabo a quatro de extrema perícia, mas jamais será
um escritor.
O leitor contumaz (não me refiro àquele ocasional, que apenas de
vez em quando leia um jornal, revista ou livro, mas ao que faz da
leitura algo essencial como comer, beber, andar, dormir,
respirar...), sabe muito bem fazer essa distinção. Fá-la não com
o intelecto (que muitas vezes nos prega peças enormes), mas com a
alma, com a sensibilidade e com a emoção.
Arrepia-me toda a vez que um guri, cheio de empáfia, me apresenta
seus textos (não raro canhestros e eivados de lugares-comuns) para
apreciação, amiúde acompanhados da afirmação “gosto muito de
escrever”. Ocorre que o escritor (o que é de fato e de direito)
não escreve por gosto (ou não só por ele), mas por necessidade. A
escrita, para ele (ou ela, claro) é uma válvula de escape, uma
descompressão dos sentidos e da alma, um exercício de exorcismo dos
seus demônios interiores. Há muitos que, sequer, gostam de
escrever.
“Mas como?!!!”, perguntará, atônito, aquele que tem ideia
estereotipada (e por isso equivocada) a propósito dessa atividade.
Pois é, a escrita, no fundo, no fundo, não é um prazer, mas uma
obrigação que às vezes temos que cumprir para conservar um mínimo
de sanidade mental.
Li, há cerca de meio século, uma crônica, da escritora cearense (e
esta sempre mereceu, de fato e de direito, esta designação) Rachel
de Queiroz, na extinta revista “O Cruzeiro”, em que essa ilustre
membro da Academia Brasileira de Letras confessava que “não
gostava de escrever”. Isso mesmo, sem tirar e nem pôr. Afirmou que
escrevia para se “livrar” de determinados livros que ficavam lhe
piscando na cabeça, como um anúncio de néon, até que viessem à
luz.
Também sou assim. Escrevo para “livrar-me” dos meus fantasmas,
das minhas memórias, das minhas angústias e demônios interiores. E
alguém, em sã consciência, sob pena de cair em ridículo e no mais
absoluto descrédito ousaria dizer que Rachel não era escritora, e
das melhores que nossa literatura já produziu? Claro que não! Nem o
mais tolo, alienado e estúpido dos indivíduos teria tamanha
ousadia.
Ainda a esse propósito, li, há já algum tempo, o discurso de posse
na Academia Paulista de Letras (muito antes de ser eleita, também,
para a augusta ABL) da escritora Lygia Fagundes Telles em que ela,
em determinado trecho, confessava que tinha “medo de escrever”.
“Mas como?!!!”, tornará a perguntar o mesmo sujeito atônito que
fez o questionamento de dúvida sobre o fato de haver escritor que
não goste de escrever (e a maioria dos que conheço me confidenciou
que não gosta mesmo).
Também tenho esse temor. Nos textos, desnudo-me por completo,
exponho o que sou e o que penso, mas sempre receoso sobre o que os
que me lerem irão achar. Esse, aliás, era o “medo” a que Lygia
se referia. Nunca sabemos o destino da palavra escrita, em que mãos
nosso texto irá parar e, por consequência, o que essa pessoa irá
pensar de nós.
Urariano ressaltou dois aspectos do escritor ao qual raramente
atentamos, mas presentes em todos eles, variando, apenas, em
intensidade: masoquismo e vaidade. No primeiro caso, Vinícius, o
querido poetinha, popularizou essa verdade na letra da canção “Eu
não existo sem você”, que compôs com o saudoso maestro Antonio
Carlos Jobim, o querido Tom.
Em determinado trecho dessa composição, ele diz:
“Assim como o oceano só é belo com o luar,
assim como a canção só tem razão se se cantar,
assim como uma nuvem só acontece se chover,
ASSIM COMO O POETA SÓ É GRANDE SE SOFRER....”
E não é?! Poeta esbanjando felicidade consegue emplacar sua obra e
sensibilizar alguém? Pode até expressá-la, mas apenas para
valorizá-la, após deixar que ela escape por entre os dedos.
Agora eu pergunto: alguma escola do mundo é capaz de ensinar essas
coisas (exceto a da vida, logicamente)? Quem seria (ou quais seriam)
tal mestre? O que o qualificaria a ensinar jovens ingênuos e
iludidos a serem escritores? Por que? Afinal, isso sequer é
considerado profissão! Pode render prestígio, mas menor, por
exemplo, do que o de um jogador de futebol ou o de um ator de novela.
Dinheiro? Raramente ganhamos algum que compense o esforço (e os
riscos). Alguém ensina isso aos que querem “aprender” a ser
escritores? E, ao se diplomarem, se não tiverem o verdadeiro estofo
de homens de letras, como serão suas obras? Profundas ou
superficiais? Originais ou eivadas de lugares-comuns? Permanentes ou
transitórias?
Carlos Drummond de Andrade escreveu, certa vez, em uma das crônicas
que publicava regularmente na sua coluna do “Jornal da Tarde”, de
São Paulo: “As obras-primas devem ter sido geradas por acaso; a
produção voluntária não vai além da mediocridade”. Esses
projetos de escritores aprenderiam esta lição dos seus “mestres”?
Acreditariam nisso ou poriam em dúvida? Dificilmente. Isso tudo só
a sensibilidade, a experiência, a autocrítica e, sobretudo a vida,
ensinam. Escola de escritores, ora, ora…
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