Monday, June 11, 2018

CRÔNICA DO DIA - Homo Urbanus


Homo Urbanus


Pedro J. Bondaczuk


A vida, nas grandes metrópoles, apresenta-se de forma muito diversa para as pessoas, dependendo de uma série de fatores e da realidade pessoal de cada uma. É, por exemplo, “suportável” para quem tenha nascido nelas, “insuportável” para os amantes da natureza e “indispensável” para uma certa casta. uma “subespécie” do Homo Sapiens, não classificada por nenhum antropólogo, mas que poderia ser chamada de “Homo Urbanus” ou algo que o valha.

No primeiro e no terceiro casos estão, óbvio, os que não conhecem outra forma de habitar, trabalhar e conviver, por terem sido condicionados, desde tenra idade, a morar encaixotados em minúsculos apartamentos com escassa ou nula privacidade, a se espremer em inseguros e sacolejantes ônibus para ir ao trabalho, a enfrentar desgastantes engarrafamentos de trânsito quando possuem os próprios carros, enfim, a passar por todas as torturas, inconvenientes e perigos que constituem o cotidiano do homem urbano.

Há, entre estes, todavia, quem, nem mesmo remotamente, conceba outro tipo de vida. Não cogitam, de forma alguma, em abrir mão das inúmeras facilidades e confortos que não encontrariam no campo, numa fazenda, num sítio ou numa chácara, por melhor aparelhados que eles sejam. Estes se sentiriam perdidos e não conseguiriam sobreviver, sequer, digamos, uma semana, sem o magnífico aparato urbano ao seu dispor, com opções para praticamente todos os gostos e necessidades. Dos que tiverem, claro, recursos para pagá-los. Nem todos têm. Aliás, os que podem são minoria.

Cito, como exemplo desse caso, um amigo pelo qual tenho grande apreço, que raramente deixou a cidade onde ambos moramos para nada e que, num determinado dia, aceitou, para minha surpresa, convite que lhe fiz para passarmos um fim de semana no sítio de um parente meu pelo lado de minha mulher. A viagem para o local foi tranquila, apesar dos solavancos do carro nos inúmeros buracos do arremedo de estrada que tivemos que tomar. Isso não era novidade nem para ele e nem para mim.

Ao chegarmos ao tal sítio, dos mais confortáveis e modernos, com eletricidade e água encanada, raridades em muitas propriedades rurais do tipo, notei que meu acompanhante se sentia perdido, angustiado e, sobretudo, entediado com a calma, a tranquilidade e o silêncio do local em que estávamos. Não que não houvesse ali o que fazer. Havia, e muito. O sítio tinha (ou na verdade tem, pois ainda está lá no mesmo lugar), entre tantas benfeitorias e facilidades, um extenso pomar, com vários tipos de árvores frutíferas, uma horta muito bem cultivada, um estábulo e até um jardim bastante florido em frente à casa.

Em vez de acompanhar-me num passeio pela mata dos arredores, que tinha um riacho tranquilo e cristalino, que em certo ponto despencava numa cascata, meu amigo optou por não sair. Pensei que se tratasse de cansaço da viagem e deixei-o em paz, pensando em convidá-lo mais tarde para a exploração da propriedade. Fiz isso algumas horas depois, tempo mais do que suficiente para que descansasse. De novo, recusou. Preferiu ficar na casa, vendo televisão. Assistiu a todos os programas, até os mais chatos (e põe chatos nisso!), que tanto detestava. A todo o momento, sugeria que voltássemos para a cidade, alegando um sem número de motivos, todos sem nenhum sentido.

À noite, não conseguiu conciliar o sono e seus passos monótonos e repetitivos pelos cômodos afora impediram-me, também, de dormir. Pela manhã, ambos com olheiras pela noite mal dormida, indaguei-lhe o que estava acontecendo. “Não consigo dormir sem o barulho dos carros em frente à minha janela”, foi sua surpreendente resposta. Ou seja, aquilo que para mim sempre foi um tormento, no caso a enlouquecedora barulheira urbana, aos seus ouvidos soavas como suave melodia, como doce canção de ninar.

O amigo “viciado em cidade” tanto insistiu, que naquela mesma manhã voltamos para a loucura e agitação da metrópole, da qual eu não via a hora de fugir e ele não a via de “voltar” . E nunca mais ele aceitou convite meu, e nem de qualquer outra pessoa, para um “passeio no campo”. Há muita gente assim. Essas pessoas nasceram e provavelmente morrerão na grande cidade em que habitam ou, no máximo, em alguma outra com características parecidas.

Conheço crianças que jamais viram, ao vivo – a não ser na televisão e em gravuras de livros – animais domésticos como vacas, cabras, cavalos e ovelhas. Algumas não viram de perto, vivas, nem mesmo galinhas! As que viram, todas, já vieram assadas e devidamente temperadas para consumo. Estas, quando crescerem, provavelmente agirão como o meu amigo. Terão fobia pelo campo, ou quase isso.

Há, todavia, os que consideram a vida nas grandes metrópoles intolerável, ou quase. Sou um desses casos. Essas pessoas não veem a hora de escapar dessas “arapucas”, para um contato mais estreito com a natureza. Sonham com o dia em que possam juntar dinheiro suficiente para comprar, se não uma fazenda, pelo menos algum modesto sítio ou, até mesmo, uma pequena chácara. Alguns conseguem. A maioria... não.

Eça de Queiroz, no romance “A cidade e as serras”, faz a seguinte observação, através de um de seus personagens: “Só uma estreita e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que só nela existem”. Exagero do escritor? Longe disso!

Quem não contar com o condicionamento de encarar as dificuldades e agruras que estas imensas selvas de cimento e asfalto, barulhentas, agitadas e poluídas, apresentam ficará à margem das pequenas coisas ao seu redor, que existem mesmo nas mais caóticas megalópolis e que na aparência são insignificantes, mas que, na verdade, são as que importam para que alguém seja feliz. A felicidade, afinal de contas, não é nunca contínua. É constituída de momentos especiais, de instantes mágicos, imortalizados na lembrança. Se possuísse continuidade, em pouco tempo viraria rotina. Provocaria o tédio. E não seria, portanto, felicidade. Podemos ser felizes em qualquer lugar. Em cidades ou fora delas. Mas...

Em outro trecho do seu romance, Eça de Queiroz escreve: “Alegria como a haverá na cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! (...) São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho”.

Sei que muitos de vocês, a esta altura, estão discordando da minha posição e até achando que exagero em minhas colocações. Alguns são sinceros em sua discordância e é possível que sejam como meu amigo, incapazes de apreciar e gozar dos encantos da natureza ou de prescindir, mesmo que por apenas um ou dois dias, das facilidades e do conforto urbanos. Respeito sua posição e até sua opção. Muitos, porém, mesmo discordando, fazem-no só “da boca para fora”. No fundo, no fundo, certamente, estarão sonhando com aquela fazendinha, ou com aquele sítio, ou mesmo com aquela chácara que tanto querem, mas cujo desejo não revelam a ninguém.

Nas selvas de cimento e asfalto, que são as grandes cidades, o indivíduo que não seja natural delas perde suas raízes culturais, seu referencial, seus valores enquanto ser pensante. Sequer consegue se concentrar em seus objetivos pessoais mais profundos, para correr atrás da fortuna (na maioria das vezes nem disso, mas somente da mera sobrevivência material), da posição social, do poder e de algo muito vago que se convencionou chamar de “sucesso”, cujas definições do que seja variam de pessoa para pessoa.

Nada disso, todavia, tem valor, se passado pelo crivo de qualquer análise, por mais superficial que seja. A felicidade está nas pequenas coisas, aparentemente triviais e sem importância, mas que são as que, de fato, importam. Como Mário Quintana afirmou num dos seus mais deliciosos poemas, ela é como os óculos, que procuramos por toda a parte, mas que no final das contas estão em nosso rosto, pouco acima do nariz.


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