Sejamos líricos
Pedro J. Bondaczuk
As
emoções, em geral, prescindem da companhia muitas vezes necessária
(mas às vezes incômoda) da razão. Têm a sua própria dinâmica,
sua lógica, seu espaço e seu tempo. Estas observações vêm a
propósito de um episódio que protagonizei há 57 anos (parece uma
eternidade e, no entanto, foi tão ontem!).
Em
janeiro de 1961 fui a Porto Alegre, visitar parentes que há tempos
não via. Tinha recém completado 19 anos de idade, aliás feitos
durante a viagem. Estava, portanto, naquela fase de achar-me o dono
do mundo, ou quase. Confiava poder conquistar tudo e todos. Estava
imbuído daquela irresponsabilidade característica dos moços, que
tanto pode conduzir a gestos de heroísmo, quanto a arroubos de
loucura. Foi quando conheci uma mulher deslumbrante, absolutamente
inesquecível.
Jamais
conversei com ela. A seu respeito, fiquei sabendo somente o nome.
Nada mais. Soube que ela estava interessada em meu primo Alexandre,
de quem era vizinha. Não trocamos nem ao menos um cumprimento, um
olhar, um sorriso, um gesto de cumplicidade e entendimento.
Nunca,
todavia --- nem até então e nem mesmo depois, pelo menos até hoje
--- conheci pessoa mais bonita. Tratava-se de uma mulher
esteticamente perfeita. Não havia um único traço, uma só linha,
um detalhe que destoasse. Era toda harmonia. Chamava-se Jeudi, como
soube através do meu primo.
Tinha
uma combinação rara da delicadeza europeia com o erotismo tropical
da brasileira. Era morena, com profundos e claros olhos azuis e
cabelos negros. Seu sorriso (ah! seu sorriso devastador!)
iluminava-lhe o rosto. Não consegui esquecê-la nunca mais. Embora a
visse somente a uma certa distância, observando-a em seus gestos
naturais, provavelmente ela jamais sequer me notou. E no entanto...
Ouso dizer, passados tantos anos, que ela é uma das paixões da
minha vida. Platônica, é verdade, mas ainda assim paixão.
Os
objetivos, as pessoas essencialmente práticas (aquelas que o
jornalista Nelson Rodrigues e o poeta Affonso Romano de Sant'Anna
chamam de "idiotas da objetividade"), devem estar rindo
desta confissão juvenil feita por um homem, digamos, “experiente”,
posto que vivido. A estes, responderia com a exortação de Nelson
Rodrigues: "Amigos, sejamos mais líricos e menos objetivos".
Até porque, quem pode explicar o que se passa na alma humana?
Emoção
racionalizada é como aquelas borboletas de colecionadores. Torna-se
morta. Perde o mistério, a chama, o viço, a graça. Ainda hoje,
tenho a imagem da Jeudi nítida, clara, viva e linda (lindíssima) na
retina. Basta fechar os olhos para vê-la no esplendor dos seus 18
anos (ou seriam 17, 16, 15? Não importa!).
Nunca
mais soube qualquer notícia dela. Hoje, provavelmente, está casada
e deve ser avó. Se a encontrasse, certamente não a reconheceria. A
mulher que amei foi aquela que ficou perdida num já distante janeiro
de 1961, no bairro Passo da Areia, de Porto Alegre, onde morava a
minha musa.
A
esse propósito, vêm-me à memória os versos de um poema de Carlos
Drummond de Andrade, que se não explica, justifica essa paixão que
talvez não tenha sido sequer platônica, podendo ser classificada
como meramente "estética" e que peço licença para
reproduzir:
"O
amor antigo vive de si mesmo,
não
de cultivo alheio ou de presença.
Nada
exige nem pede. Nada espera,
mas
do destino não nega a sentença.
O
amor antigo tem raízes fundas,
feitas
de sofrimento e beleza.
Por
aquelas mergulha no infinito,
e
por estas suplanta a natureza.
Se
em toda parte o tempo desmorona
aquilo
que foi grande e deslumbrante,
o
antigo amor, porém, nunca fenece
e
a cada dia surge mais amante.
Mais
ardente, mas pobre de esperança.
Mais
triste? Não. Ele venceu a dor,
e
resplandece no seu canto obscuro,
tanto
mais velho quanto mais amor".
Dizem
que o tempo tudo apaga. Isto, porém, é relativo. É mera
generalização. Enquanto estivermos vivos, é incapaz de apagar
nossas lembranças mais vívidas, mais lúcidas, mais marcantes.
Distorce, é verdade, alguns de seus contornos. Desfoca a imagem e a
torna diluída, esmaecida, como uma fotografia amarelada.
Mas
o principal permanece. A emoção original fica até mais intensa, em
decorrência da saudade. Cinquenta e sete anos... Não consigo me
furtar de repetir os versos de Cora Coralina que dizem:
"Eu
nasci num tempo antigo
muito
velho
muito
velhinho, velhíssimo".
Eu
também...
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