Forçados à cooperação
Pedro J. Bondaczuk
O homem ainda tem longo caminho a percorrer até entender, no fundo
da sua alma, que seu papel no mundo é o de ser parte de um todo e
que sua vida será um fracasso caso se volte exclusivamente para o
individual, em detrimento do coletivo. Não se trata de abrir mão da
individualidade, mas de colocá-la, espontaneamente, a serviço do
grupo.
Mantive, por muitos anos, em minha mesa de trabalho, quando era
editor do “Correio Popular”, uma gravura que ilustra bem a
necessidade de cooperação. Ela mostrava, de um lado, dois burrinhos
atados a um poste por uma corda, tendo à frente de cada um, um monte
de feno. Quando cada qual buscava chegar ao seu, ao mesmo tempo, não
conseguia. Enrolavam-se, tentavam, mas sempre em vão.
Do outro lado, porém, a gravura mostrava o momento em que os dois
muares iam para um mesmo lado, juntos. Nesse caso, a corda permitia
que chegassem primeiro ao monte de feno da direita (que devoravam com
apetite e satisfação), e depois ao da esquerda, em que se fartavam
com o mesmo prazer.
Pena que não tenho mais essa gravura para me inspirar. Não sei que
fim ela levou, onde foi parar. Quando saí do jornal, não me lembro
se a deixei na redação, como lembrança dos vinte anos que lá
passei, ou se a trouxe para casa e a perdi no meio das tantas
bugigangas que acumulo, sem grande (ou nenhuma) ordem. Vi-a em várias
salas de chefes de seção, depois disso.
Mas podemos ilustrar essa necessidade de cooperação com algo
melhor, com o que ocorre no nosso corpo. Somos integrados por
bilhões, quiçá trilhões, de células, cada uma com sua
individualidade e vida próprias e com respectiva função. Como
qualquer ser vivo (que, de fato, são), nascem, crescem, se
reproduzem e morrem.
Todavia, cada qual executa sua tarefa, integrada ao todo, nunca em
oposição a ele, o que garante a saúde e a sobrevivência do
organismo inteiro e, por consequência, a própria. No entanto, se
alguma célula eventualmente se desgarrar e, subitamente, sem nenhum
aviso, passar a atacar as demais e a devorá-las, o corpo todo ficará
desarranjado. Adoecerá gravemente. E se a agressora não for
contida, ou imediatamente eliminada, o conjunto morrerá
inexoravelmente. E, com sua morte, os bilhões, quiçá trilhões de
células morrerão também, inclusive, claro, a que deflagrou o
processo destrutivo.
Assim são os homens. Atuando de forma egoística, o que conseguem é,
apenas, “adoecer” o corpo social. E se o “remédio” não for
logo aplicado, ou não se mostrar eficaz, todo o organismo haverá de
se extinguir fatalmente (no caso, a humanidade).
Este terceto com que o poeta Augusto dos Anjos encerra o soneto
“Último credo” ilustra bem essa necessidade de um sentido
coletivo na atuação de cada indivíduo que compõe a nossa espécie:
“Creio, como o filósofo mais crente,
na generalidade decrescente
com que a substância cósmica evolui…
Creio, perante a evolução imensa,
que o homem universal de amanhã vença
o homem particular que eu ontem fui!”.
Só se (ou quando) esta vitória ocorrer, o ser humano poderá se
considerar, de fato, racional. Até lá... Notem que não há
particularidades no universo. Tudo e todos somos partes de uma
unidade infinitamente maior, absoluta, de dimensões inconcebíveis
para a pífia e limitadíssima mente humana.
Nossas alegrias, por exemplo, somam-se à de bilhões de outras
pessoas, mundo afora e, quiçá, à de um número até não
dimensionável de outros seres, caso haja vida inteligente em outras
partes do Cosmo (provavelmente, há). O mesmo raciocínio vale para
nossas dores, tristezas, frustrações, amores, inquietações
etc.etc.etc.
Nós e nossos pensamentos, sentimentos e aspirações não somos
originais e muitíssimo menos únicos. Daí ser incompreensível o
egoísmo, o culto fanático e insensato de alguns ao “próprio
umbigo”, como se fossem o centro do universo e a própria razão
dele e tudo que ele contém existirem. Óbvio, não são.
Relutamos em entender e assumir nosso papel, que é mínimo, ínfimo,
ridículo no concerto universal, embora nossa intuição nos indique
o quão pequeno ele é. Queiram ou não, pois, os empedernidos
egoístas, todos somos obrigados a cooperar uns com os outros, para
manter esse arremedo de civilização e até para assegurar nossa
sobrevivência.
Cada qual desempenha um papel, de acordo com suas aptidões e
talentos: o médico, o pedreiro, o engenheiro, o jornalista, o
lixeiro, o padeiro etc.etc.etc. Imaginem se não fosse assim? Seria o
caos instalado. Imperaria a lei das selvas. A despeito de todas as
imperfeições, desmandos e até aberrações, bem ou mal, é esse
espírito cooperativo (raramente espontâneo) que mantém coesas as
sociedades e lhes confere um toque mínimo de organização.
É certo que essa cooperação poderia (e deveria) ser mais ampla, se
não irrestrita e absoluta, envolvendo todos os povos. Pena que não
é. Nunca entendi essa divisão do mundo por países (e surgem novos,
amiúde, como que brotados do nada), por causa de conceitos tolos,
como poder, soberania, etnia, tradições religiosas etc.
Sinto-me, porém, cidadão do mundo, o que de fato sou, habitante de
um planeta pequeno e de ínfima importância na ordem universal.
Morris West colocou as seguintes e lúcidas palavras na boca de um
personagem do seu romance “A Torre de Babel”: “Somos forçados,
mesmo contra vontade, a cooperar na sanidade mútua. Por que não
levamos esta cooperação mais longe? Por que o nós e o eles
continuam a acreditar que outras coisas intangíveis são necessárias
para nossa identidade: soberania, posse deste ou daquele santuário,
ocupação de uns metros de terra estéril, tradições religiosas ou
étnicas...Somos ainda crianças brigando por uma maçã, chorando
uns e outros, enquanto a maçã apodrece no pé”.
Por que não cooperamos mais, uns com os outros, se esse é o único
caminho da eficiência dos nossos atos? Por que agimos como os
burrinhos que buscam chegar ao mesmo tempo ao respectivo monte de
feno por conta própria, apesar da corda que os prende ao poste não
permitir isso? Por que sermos a célula louca e descontrolada, que
tenta devorar as vizinhas e parceiras, numa atitude doentia e
suicida? Sim, por que?
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