Gratidão
ou compromisso?
Pedro
J. Bondaczuk
O
escritor (alguns escritores, óbvio, nem todos) tem veneração pela
matéria-prima do seu ofício, a palavra. Pesquisa seu real
significado, analisa suas transformações no correr do tempo sob a
influência do povo (mais do que a dos gramáticos) e estuda, até,
sua história, suas raízes, sua origem, se proveniente do latim, do
árabe, das línguas indígenas ou africanas, etc. Da minha parte,
gosto desse exercício, dessa espécie de arqueologia vocabular.
Quanto mais conheço tudo o que se refira às palavras, mais seguro
me sinto na sua utilização nos meus textos.
Antes
que me questionem, vou adiantando que não se trata de purismo, nem
de frescura, e muito menos de pedantismo. Longe disso. Até porque,
minha arqueologia vocabular restringe-se ao idioma que falo e não a
nenhum outro de que me valho apenas ocasionalmente, o que utilizo
para escrever, ou seja, esta apaixonante “última flor do Lácio,
inculta e bela”, como a ela se referiu o poeta Olavo Bilac.
Trata-se
de um prazer, de algo simultaneamente útil e lúdico e divertido.
Ademais, o saber não ocupa lugar. Quanto mais sabemos, menos
bobagens estamos sujeitos de cometer. Queiram ou não, conhecimento é
poder. Só quando realizo essas pesquisas é que percebo como muitas
expressões fartamente utilizadas, por letrados ou iletrados não
importa, têm significado real muito diverso do pretendido pelos que
as usam, falando e/ou escrevendo.
Vamos
a um exemplo, o que me suscitou esta reflexão. Refiro-me à
expressão “obrigado”, que todo sujeito bem educado utiliza, ou
deve utilizar, quando recebe um favor ou ganha qualquer coisa, de
simples balinha a um carrão zero quilômetro (se é que há algum
maluco que nos faça doação desse porte). Desde criancinhas, quando
mal aprendemos a balbuciar as primeiras palavras, somos instruídos
por nossos pais a nos valermos dessa palavrinha, como demonstração
de que temos educação (às vezes sem que a tenhamos, é verdade).
Titio nos dá uma balinha, ou vovô um brinquedinho e, de imediato, a
mamãe nos encara e questiona: “Como é que se diz?”. Entendemos
logo a mensagem e sapecamos: “obrigado”!
Todavia,
poucos, pouquíssimos sabem que quando nos expressamos assim, não
estamos agradecendo coisíssima nenhuma, como é nossa intenção.
Estamos, isto sim, assumindo um compromisso, uma obrigação, que
poucos, pouquíssimos, (creio que ninguém) cumprem. Não raro,
acrescentamos, ainda, uma palavra com sentido de intensidade e
dizemos “muito obrigado”. Ou seja, sem nos darmos conta, nos
sentimos obrigadíssimos a retribuir o favor, ou o bem, ou a
gentileza recebidos. Vocês conhecem quem já haja retribuído e
cumprido a promessa tão automaticamente feita? Eu não conheço.
Recorro
ao dicionário eletrônico Wikcionário para tornar minha explicação,
digamos, mais técnica, mais didática. Essa expressão pode ser um
adjetivo e com dois significados diferentes. O primeiro é: forçado,
obrigado por lei, norma, necessidade ou uso: obrigatório,
inevitável. O segundo é o de agradecido (sentido que queremos de
fato emprestar ao termo quando o utilizamos), grato, que fica em
dívida, que assume uma obrigação. Este último significado é o
original do termo.
A
palavra pode, também, ser uma interjeição, quando dizemos: “o
meu obrigado!”, com o ponto de exclamação no final. Claro que
então (e em nenhum dos casos) não nos propomos a assumir uma
obrigação. Porém, pelo menos da boca para fora, a assumimos, não
raro com ênfase e intensidade, quando acrescentamos o “muito” à
frente desse suposto, ou pelo menos pretendido agradecimento.
Reproduzo,
para maior clareza sua, paciente e interessado leitor, o que diz o
Wikcionário, no verbete referente à etimologia: “Particípio
passado de obrigar. No sentido de grato, agradecido, terá resultado
da simplificação e redução de uma expressão semelhante a: fico
obrigado a (= sinto-me na obrigação de) retribuir o favor. Daí a
flexão que se mantém: obrigado, obrigada, obrigados. Contudo, cada
vez mais há quem defenda que obrigado evoluiu para interjeição,
sendo então invariável”.
Notem
bem, com a revelação de que, o que a maioria pensa que é um
agradecimento é, em seu verdadeiro significado, uma promessa, um
solene compromisso, não estou sugerindo a ninguém que não utilize
a expressão quando agraciado com algum bem, favor ou gentileza,
pois, se agir assim, passará por ingrato, por grosseiro, por mal
educado.
Minha
intenção é que, quando se expressar dessa forma, saiba exatamente
o que está dizendo, ou seja, o que isso significa. E que, se
estiver, mesmo, tão grato, como quer dar a entender, que cumpra a
promessa verbalizada. Que retribua, ao seu benfeitor, com um bem, um
favor ou uma gentileza equivalente à que está agradecendo.
Seguindo
nesta toada, aproveito o ensejo para deixar-lhes meu muito obrigado
por sua paciência e atenção. E aqui, exprimo-me no sentido de um
compromisso mesmo. Ou seja, comprometo-me a dar-lhes atenção igual
ou equivalente à que vocês me derem.
Viram
como são caprichosas as palavras, nesta nossa fascinante língua
portuguesa? É divertido ou não pesquisá-las, com o olhar acurado e
atento de um arqueólogo vocabular? Claro que sim! Tentem adquirir
esse hábito e verão que, quando menos esperarem, ele se tornará um
vício. Saudável e útil vício.
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