O
lado fatal
Pedro
J. Bondaczuk
A
escritora Lia Luft considera-se (ou pelo menos se sente assim) “mais
romancista do que poetisa”. Com todo o respeito que ela merece,
peço licença, porém, para discordar. Por que? Porque ela transita
com a mesma competência e sensibilidade em ambos gêneros: tanto no
romance quanto na poesia. Para alguém com talento (e ela o possui de
sobejo), nada impede que transite com essa mesma maestria e qualidade
em campos tão distintos da literatura. E ela transita.
O
leitor é testemunha da minha admiração e fascínio por esta
escritora, sobre a qual já escrevi diversas vezes. Por ler vários
dos seus livros, e apreciá-los a todos, é que a considero,
simultaneamente, tanto uma romancista das melhores e mais criativas,
cujos enredos (e cuja escrita) me prendem a atenção e me fascinam,
quanto uma poetisa cujos poemas me emocionam e são capazes, até, de
me levar às lágrimas.
Quer
no romance, quer na poesia, sua linguagem é absolutamente clara,
límpida, direta, sem inúteis “pirotecnias” verbais, recursos
amiúde adotados por homens de letra que perdem de vista o verdadeiro
papel da literatura. E este não se resume, como alguns erroneamente
supõem, a floreios, até sonoros (posto que enganadores), porém
inúteis e, por isso, prescindíveis. É, sim, uma forma de
comunicação que deve ser clara e objetiva, de pensamentos e
sentimentos. Isso, reitero, Lia Luft, de fato, faz. Ou seja,
comunica. E com objetividade e competência.
Este
preâmbulo, talvez um tanto extenso, destina-se a destacar o
relançamento, em 2011, de um dos livros mais marcantes da escritora,
“O lado fatal”, lançado em 1988 pela Editora Record, mas
retirado de circulação, a pedido da autora, após tornar-se sucesso
de vendas. O que a levou a essa, digamos, intempestiva decisão? É
difícil de afirmar com segurança, sem conhecer todas as
circunstâncias. Só se pode especular a propósito.
Creio
que a retirada de circulação de “O lado fatal” foi um súbito
arrependimento da poetisa de partilhar sua dor com estranhos. Afinal,
nunca sabemos em quais mãos vão parar os livros que escrevemos.
Nunca temos conhecimento sobre o que esse juiz implacável e sem
rosto, o leitor, vai achar do conteúdo e da forma de expressão
desse fruto do nosso intelecto e da nossa emoção.
E
por que utilizei a palavra “dor” para caracterizar o cerne de “O
lado fatal”? Porque era, certamente, isso o que Lia estava sentindo
quando compôs cada um dos poemas nele inseridos e quando se propôs
a publicá-los. Explico: o livro foi escrito em homenagem ao
psicanalista e também escritor Hélio Pellegrino, que havia morrido
pouco antes, com quem foi casada por dois anos e três meses. São
textos íntimos demais, como apaixonados bilhetes de amor, ou como
páginas de um diário que mantemos ciosamente longe das vistas
alheias.
Embora
o livro seja de poesia, é, sobretudo, autobiográfico (aliás, o
único da escritora com esta característica). Os poemas falam, com
clareza, emoção e saudade, da sua vida com Hélio Pellegrino, dos
momentos inesquecíveis, impossíveis de serem reprisados, mas que só
a morte poderá apagar da sua memória. “O lado fatal” é,
simultaneamente, terno e pungente. É “tristemente encantador”,
já que a tristeza também pode ser transformada em coisa bela, na
pena de um poeta sensível e com o dom de despertar empatia.
O
leitor, a esta altura, talvez esteja se perguntando: “Se o livro
foi tirado de circulação, por que cargas d’água este sujeito
enxerido insiste em tratar dele?”. Simples. Porque quem não teve
oportunidade de adquirir e de ler esta obra, agora a tem. Já tratei
a esse respeito em 2011 e torno a fazê-lo agora, por julgar ainda
oportuno. A poetisa gaúcha informou, quando do relançamento, que
recebeu inúmeros apelos para que relançasse “O lado fatal”. Diz
que meditou bastante e que, no final das contas, decidiu atender
esses tantos leitores. Dessa forma, o livro foi relançado, pela
mesma Editora Record, para satisfação dos amantes da boa poesia.
Lia
escreveu, em determinado trecho dessa obra, de pungente beleza,
(felizmente, de novo, ao alcance do público): “Deus (ou foi a
Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não
se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com
ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital e
partiu”. Não conheço dor maior do que esta, representada pela
perda irreparável de alguém a que amamos sem freios e restrições.
Nós,
escritores, porém, temos missão indeclinável: escrever sobre a
vida, tanto como ela de fato é, quanto como seria ideal que fosse.
E, para isso, não podemos ter nenhum pudor. Temos que nos desnudar
publicamente, expor nossas chagas, feridas, cicatrizes e vísceras e
revelar até os mais secretos anseios, fazendo das nossas
experiências e dores obras que se tornem marcantes, quiçá
imortais. É assim que se faz a boa literatura, a que realmente vale
a pena e que permanece.
Não
quero e nem vou privá-lo de “saborear” pelo menos uma palhinha
desse magnífico livro. Dentre os vários poemas que compõem suas 96
páginas, de legítima e honesta poesia, separei, meio que
aleatoriamente, os versos abaixo, que confirmam tudo o que escrevi a
propósito:
XXIX
O
meu amado era velho e moço
ríspido e cândido
apaixonado
e solitário
e compreendeu minha atormentada alma como ninguém.
Achava
graça em mim algumas vezes.
Mas quando eu lhe dizia sentir medo
sem razão
no meio da noite
(com certeza antecipando a
separação que sobrevinha)
ele me abraçava calado e sombrio,
dizendo:
"É para se ter medo mesmo."
Não
pronunciávamos então a palavra temida
que talvez nos
espreitasse nos cantos do quarto.
Só nessas ocasiões ele não
me explicava nada.
Lia
Luft está ou não, portanto, equivocada ao se sentir mais
romancista? Claro que sim! Porquanto, mesmo produzindo romances
marcantes, é legítima poetisa que cativa nossa alma e agita nossas
emoções.
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