Sunday, June 10, 2018

CRÔNICA DO DIA - O lado fatal


O lado fatal

Pedro J. Bondaczuk


A escritora Lia Luft considera-se (ou pelo menos se sente assim) “mais romancista do que poetisa”. Com todo o respeito que ela merece, peço licença, porém, para discordar. Por que? Porque ela transita com a mesma competência e sensibilidade em ambos gêneros: tanto no romance quanto na poesia. Para alguém com talento (e ela o possui de sobejo), nada impede que transite com essa mesma maestria e qualidade em campos tão distintos da literatura. E ela transita.
O leitor é testemunha da minha admiração e fascínio por esta escritora, sobre a qual já escrevi diversas vezes. Por ler vários dos seus livros, e apreciá-los a todos, é que a considero, simultaneamente, tanto uma romancista das melhores e mais criativas, cujos enredos (e cuja escrita) me prendem a atenção e me fascinam, quanto uma poetisa cujos poemas me emocionam e são capazes, até, de me levar às lágrimas.
Quer no romance, quer na poesia, sua linguagem é absolutamente clara, límpida, direta, sem inúteis “pirotecnias” verbais, recursos amiúde adotados por homens de letra que perdem de vista o verdadeiro papel da literatura. E este não se resume, como alguns erroneamente supõem, a floreios, até sonoros (posto que enganadores), porém inúteis e, por isso, prescindíveis. É, sim, uma forma de comunicação que deve ser clara e objetiva, de pensamentos e sentimentos. Isso, reitero, Lia Luft, de fato, faz. Ou seja, comunica. E com objetividade e competência.
Este preâmbulo, talvez um tanto extenso, destina-se a destacar o relançamento, em 2011, de um dos livros mais marcantes da escritora, “O lado fatal”, lançado em 1988 pela Editora Record, mas retirado de circulação, a pedido da autora, após tornar-se sucesso de vendas. O que a levou a essa, digamos, intempestiva decisão? É difícil de afirmar com segurança, sem conhecer todas as circunstâncias. Só se pode especular a propósito.
Creio que a retirada de circulação de “O lado fatal” foi um súbito arrependimento da poetisa de partilhar sua dor com estranhos. Afinal, nunca sabemos em quais mãos vão parar os livros que escrevemos. Nunca temos conhecimento sobre o que esse juiz implacável e sem rosto, o leitor, vai achar do conteúdo e da forma de expressão desse fruto do nosso intelecto e da nossa emoção.
E por que utilizei a palavra “dor” para caracterizar o cerne de “O lado fatal”? Porque era, certamente, isso o que Lia estava sentindo quando compôs cada um dos poemas nele inseridos e quando se propôs a publicá-los. Explico: o livro foi escrito em homenagem ao psicanalista e também escritor Hélio Pellegrino, que havia morrido pouco antes, com quem foi casada por dois anos e três meses. São textos íntimos demais, como apaixonados bilhetes de amor, ou como páginas de um diário que mantemos ciosamente longe das vistas alheias.
Embora o livro seja de poesia, é, sobretudo, autobiográfico (aliás, o único da escritora com esta característica). Os poemas falam, com clareza, emoção e saudade, da sua vida com Hélio Pellegrino, dos momentos inesquecíveis, impossíveis de serem reprisados, mas que só a morte poderá apagar da sua memória. “O lado fatal” é, simultaneamente, terno e pungente. É “tristemente encantador”, já que a tristeza também pode ser transformada em coisa bela, na pena de um poeta sensível e com o dom de despertar empatia.
O leitor, a esta altura, talvez esteja se perguntando: “Se o livro foi tirado de circulação, por que cargas d’água este sujeito enxerido insiste em tratar dele?”. Simples. Porque quem não teve oportunidade de adquirir e de ler esta obra, agora a tem. Já tratei a esse respeito em 2011 e torno a fazê-lo agora, por julgar ainda oportuno. A poetisa gaúcha informou, quando do relançamento, que recebeu inúmeros apelos para que relançasse “O lado fatal”. Diz que meditou bastante e que, no final das contas, decidiu atender esses tantos leitores. Dessa forma, o livro foi relançado, pela mesma Editora Record, para satisfação dos amantes da boa poesia.
Lia escreveu, em determinado trecho dessa obra, de pungente beleza, (felizmente, de novo, ao alcance do público): “Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital e partiu”. Não conheço dor maior do que esta, representada pela perda irreparável de alguém a que amamos sem freios e restrições.
Nós, escritores, porém, temos missão indeclinável: escrever sobre a vida, tanto como ela de fato é, quanto como seria ideal que fosse. E, para isso, não podemos ter nenhum pudor. Temos que nos desnudar publicamente, expor nossas chagas, feridas, cicatrizes e vísceras e revelar até os mais secretos anseios, fazendo das nossas experiências e dores obras que se tornem marcantes, quiçá imortais. É assim que se faz a boa literatura, a que realmente vale a pena e que permanece.
Não quero e nem vou privá-lo de “saborear” pelo menos uma palhinha desse magnífico livro. Dentre os vários poemas que compõem suas 96 páginas, de legítima e honesta poesia, separei, meio que aleatoriamente, os versos abaixo, que confirmam tudo o que escrevi a propósito:
XXIX
O meu amado era velho e moço
ríspido e cândido
apaixonado e solitário
e compreendeu minha atormentada alma como ninguém.

Achava graça em mim algumas vezes.
Mas quando eu lhe dizia sentir medo sem razão
no meio da noite
(com certeza antecipando a separação que sobrevinha)
ele me abraçava calado e sombrio, dizendo:
"É para se ter medo mesmo."

Não pronunciávamos então a palavra temida
que talvez nos espreitasse nos cantos do quarto.
Só nessas ocasiões ele não me explicava nada.




Lia Luft está ou não, portanto, equivocada ao se sentir mais romancista? Claro que sim! Porquanto, mesmo produzindo romances marcantes, é legítima poetisa que cativa nossa alma e agita nossas emoções.

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