Saudosa maloca
Pedro J. Bondaczuk
A
arte do "jeitinho" do brasileiro – não o lado da burla
de normas, regras, regulamentos e leis, mas a capacidade de
improvisação – nos possibilita fazer coisas que, em uma ação
convencional, jamais conseguiríamos. Exemplo disso são as chamadas
repúblicas, casas ou apartamentos alugados coletivamente por
estudantes de uma outra cidade, que lhes proporcionam moradia a baixo
custo, permitindo custear suas despesas com a universidade.
Morei
em uma delas, de 1965 a
1971 (portanto, há mais de meio século)
localizada em Barão Geraldo (distrito de Campinas). Na época, esse
era um motivo de constantes queixas (minhas
e de meus companheiros de moradia),
por falta de privacidade e outros inconvenientes menores, que então
aborreciam muito. Hoje, essa é a fase da vida que recordo com mais
saudades. Na ocasião,
eu mal atingira o início da maturidade, aos 22 anos de idade, em que
tudo parecia fácil e belo. O tempo encarregou-se de mostrar-me que
não era bem assim...
É
como diz o escritor Jean Rostand (não confundir com o dramaturgo
Edmond, autor de "Cyrano de Bergerac"): "O 'amanhã '
é que decidirá se o 'hoje' foi feliz ou infeliz". Trata-se de
uma outra versão do que diz a letra de um famoso samba-canção de
Ataúlfo Alves, que confessa: "Eu era feliz e não sabia".
Não sabia mesmo…
Nossa
república, que tinha uma característica diferente por ser de
operários vindos de partes diversas do País para trabalhar na
Rhodia de Paul¡nia, foi batizada de Saudosa Maloca. Não que
morássemos mal, em alguma tapera, longe disso. As casas (pois ela
começou em uma residência e foi mudada duas vezes, por uma questão
de circunstância e de custo), até que eram confortáveis.
Tratou-se, isto sim, de homenagem ao famoso sambinha de Adoniran
Barbosa, imortalizado pelos Demônios da Garoa.
Apesar
de não sermos parentes e sequer conhecidos na ocasião em que nos
juntamos, nosso cantinho não se caracterizava pela bagunça.
Tínhamos uma organização exemplar e criativa. Por exemplo,
"elegíamos", a cada dois anos, um "presidente da
república", que tinha o direito a uma reeleição. As funções
que permitiam o bom funcionamento da casa eram todas definidas e os
que as exerciam eram escolhidos por sorteio. Um era encarregado de
arrecadar e pagar o aluguel e todas as contas, como água, luz,
impostos, gás, alimentos, etc. Outro, tinha a obrigação de fazer o
café e as refeições. Outro, ainda, assumia a tarefa de limpeza, e
assim por diante.
E
não me lembro de uma única ocasião em que alguém deixou de
cumprir a incumbência que lhe competia. As controvérsias eram
resolvidas por um "conselho", uma espécie de "judiciário",
que se reunia uma vez por semana. Havia multas para os que falassem
palavrões. O dinheiro ía para a caixinha, que financiava a compra
dos gêneros alimentícios da casa. E esta nunca estava vazia.
Éramos
seis (bom título para um romance). Todos de regiões diversas do
Brasil. Havia um gaúcho (eu), mas que não viera para Campinas do
Rio Grande do Sul, mas de outro sul, este paulista, ou seja, de São
Caetano do Sul; um catarinense (o Toninho, procedente de União da
Vitória), um baiano (o Zito), um carioca (o Gerson) e dois mineiros
(por sinal, irmãos), o Jarbas e o José. Este último chamávamos de
“Zé Formiga”, pois nascera na cidade de Minas que tem esse nome,
embora ele não gostasse nada, nada do apelido. Os irmãos mineiros,
em particular, eram extraordinárias figuras humanas: simples, leais
e paus para toda obra.
Claro
que às vezes a disciplina ía para as cucuias, e a república virava
uma bagunça. Mas sem exagero. Respeitávamos, sobretudo, os
vizinhos. Tanto que cinco de nós nos casamos com moças de Barão
Geraldo. Só o Gerson casou-se com alguém de fora do distrito, com a
Juracy (Jura) que residia na Vila Lutécia, na Rhodia.
Nos
divertíamos demais com as diferenças culturais dos Estados de que
procedíamos. E quem não ficasse esperto, não escapava de alguma
brincadeira, às vezes de mau gosto. Esse foi o caso, por exemplo, do
dia em que colocamos um cágado, que encontramos perambulando nas
redondezas, sob os lençóis da cama do Jarbas. Foi inesquecivelmente
hilariante a cara de susto que o bom mineirão fez quando de repente
viu, saindo por entre as cobertas, aquela cabeça feia, com pescoço
comprido, parecido com uma cobra. Quase desmaiou!!! E todos, claro,
caímos em incontrolável gargalhada, dessa de nos fazer chorar de
tanto rir.
Só
hoje entendo o quanto de premonição houve no nome que demos à
nossa república: Saudosa Maloca… Ah, se saudade matasse!!! Ainda
bem que não mata e que, pelo contrário, não raro, nos
reconforta...
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