Wednesday, June 13, 2018

CRÔNICA DO DIA - Saudosa maloca


Saudosa maloca



Pedro J. Bondaczuk

A arte do "jeitinho" do brasileiro – não o lado da burla de normas, regras, regulamentos e leis, mas a capacidade de improvisação – nos possibilita fazer coisas que, em uma ação convencional, jamais conseguiríamos. Exemplo disso são as chamadas repúblicas, casas ou apartamentos alugados coletivamente por estudantes de uma outra cidade, que lhes proporcionam moradia a baixo custo, permitindo custear suas despesas com a universidade.

Morei em uma delas, de 1965 a 1971 (portanto, há mais de meio século) localizada em Barão Geraldo (distrito de Campinas). Na época, esse era um motivo de constantes queixas (minhas e de meus companheiros de moradia), por falta de privacidade e outros inconvenientes menores, que então aborreciam muito. Hoje, essa é a fase da vida que recordo com mais saudades. Na ocasião, eu mal atingira o início da maturidade, aos 22 anos de idade, em que tudo parecia fácil e belo. O tempo encarregou-se de mostrar-me que não era bem assim...

É como diz o escritor Jean Rostand (não confundir com o dramaturgo Edmond, autor de "Cyrano de Bergerac"): "O 'amanhã ' é que decidirá se o 'hoje' foi feliz ou infeliz". Trata-se de uma outra versão do que diz a letra de um famoso samba-canção de Ataúlfo Alves, que confessa: "Eu era feliz e não sabia". Não sabia mesmo…

Nossa república, que tinha uma característica diferente por ser de operários vindos de partes diversas do País para trabalhar na Rhodia de Paul¡nia, foi batizada de Saudosa Maloca. Não que morássemos mal, em alguma tapera, longe disso. As casas (pois ela começou em uma residência e foi mudada duas vezes, por uma questão de circunstância e de custo), até que eram confortáveis. Tratou-se, isto sim, de homenagem ao famoso sambinha de Adoniran Barbosa, imortalizado pelos Demônios da Garoa.

Apesar de não sermos parentes e sequer conhecidos na ocasião em que nos juntamos, nosso cantinho não se caracterizava pela bagunça. Tínhamos uma organização exemplar e criativa. Por exemplo, "elegíamos", a cada dois anos, um "presidente da república", que tinha o direito a uma reeleição. As funções que permitiam o bom funcionamento da casa eram todas definidas e os que as exerciam eram escolhidos por sorteio. Um era encarregado de arrecadar e pagar o aluguel e todas as contas, como água, luz, impostos, gás, alimentos, etc. Outro, tinha a obrigação de fazer o café e as refeições. Outro, ainda, assumia a tarefa de limpeza, e assim por diante.

E não me lembro de uma única ocasião em que alguém deixou de cumprir a incumbência que lhe competia. As controvérsias eram resolvidas por um "conselho", uma espécie de "judiciário", que se reunia uma vez por semana. Havia multas para os que falassem palavrões. O dinheiro ía para a caixinha, que financiava a compra dos gêneros alimentícios da casa. E esta nunca estava vazia.

Éramos seis (bom título para um romance). Todos de regiões diversas do Brasil. Havia um gaúcho (eu), mas que não viera para Campinas do Rio Grande do Sul, mas de outro sul, este paulista, ou seja, de São Caetano do Sul; um catarinense (o Toninho, procedente de União da Vitória), um baiano (o Zito), um carioca (o Gerson) e dois mineiros (por sinal, irmãos), o Jarbas e o José. Este último chamávamos de “Zé Formiga”, pois nascera na cidade de Minas que tem esse nome, embora ele não gostasse nada, nada do apelido. Os irmãos mineiros, em particular, eram extraordinárias figuras humanas: simples, leais e paus para toda obra.

Claro que às vezes a disciplina ía para as cucuias, e a república virava uma bagunça. Mas sem exagero. Respeitávamos, sobretudo, os vizinhos. Tanto que cinco de nós nos casamos com moças de Barão Geraldo. Só o Gerson casou-se com alguém de fora do distrito, com a Juracy (Jura) que residia na Vila Lutécia, na Rhodia.

Nos divertíamos demais com as diferenças culturais dos Estados de que procedíamos. E quem não ficasse esperto, não escapava de alguma brincadeira, às vezes de mau gosto. Esse foi o caso, por exemplo, do dia em que colocamos um cágado, que encontramos perambulando nas redondezas, sob os lençóis da cama do Jarbas. Foi inesquecivelmente hilariante a cara de susto que o bom mineirão fez quando de repente viu, saindo por entre as cobertas, aquela cabeça feia, com pescoço comprido, parecido com uma cobra. Quase desmaiou!!! E todos, claro, caímos em incontrolável gargalhada, dessa de nos fazer chorar de tanto rir.

Só hoje entendo o quanto de premonição houve no nome que demos à nossa república: Saudosa Maloca… Ah, se saudade matasse!!! Ainda bem que não mata e que, pelo contrário, não raro, nos reconforta...

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