Monday, March 26, 2018

DIRETO DO ARQUIVO - Ideais de civismo


Ideais de civismo

Pedro J. Bondaczuk

O País completa, amanhã (21 de abril de 1986), o primeiro ano sem Tancredo Neves, e bastante modificado em relação à data da sua morte. Agora, respiram-se ares de confiança e tranquilidade, depois que foi amainada a maior crise econômica e social pela qual nossa sociedade já passou ao longo da sua história.

Há, até mesmo, uma certa euforia nacional, passado o impacto da implantação do “Plano Inflação Zero”, que, no primeiro mês que esteve em vigor, superou as mais otimistas expectativas e registrou um fato até então inédito no Brasil: a “deflação” ou “desinflação”, como o presidente José Sarney preferiu caracterizar a queda geral dos preços.

O governo está, até mesmo, pisando nos freios, para impedir que a economia cresça muito além do que estava previsto, tamanha vem sendo a confiança depositada pelos investidores na atual conjuntura. Tancredo, para infelicidade nossa e sua, não pôde, evidentemente, ver nada disso. Ou seja, foi um semeador, impedido pelas circunstâncias de testemunhar a germinação das ideias e propostas que semeou.

Muito daquilo de bom que está acontecendo hoje (se não tudo) se deve à sua ação judiciosa e conciliadora. Deve ser creditado à sua ilimitada confiança na criatividade e no vigor do nosso povo. Afinal, o presidente eleito (mas nunca empossado) manifestou, em inúmeras ocasiões, que nós mesmos é que temos que assumir a tarefa de construir a sociedade ideal, com a qual sonhamos, sem esperar nenhuma ajuda externa que, ademais, sempre que concedida, vem acompanhada, invariavelmente, da exigência de alguma concessão intolerável.

Nesta oportunidade, também é lícito e justo lembrar dessa outra figura, que ficou um tanto esquecida nestes 365 dias que nos separam da perda de um dos nossos maiores líderes políticos. Refiro-me a uma dama que, pelo seu comportamento comedido, digno e sereno, num momento de dor – quando viu definhar, diante de seus olhos o companheiro e amigo de toda uma vida – conquistou o respeito, a admiração e o amor dos brasileiros: Dona Risoleta Neves.

Anteontem, essa corajosa mulher foi alvo de justíssima homenagem, prestada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Na oportunidade, mal contendo a emoção ao expressar-se publicamente, em entrevista à imprensa, não conseguiu dissimular a saudade de Tancredo Neves. Fez isso, porém, da mesma forma que nós fizemos, consciente ou inconsciente, ao longo deste um ano sem a sua presença. Ou seja, consolando-se com as lições de vida e de bom-senso que esse notável líder nos deixou.

Não fosse a visão política, o espírito público e a maleabilidade de Tancredo Neves, dificilmente teríamos feito essa delicada travessia de uma prolongada e perversa ditadura, de duas décadas de duração, para uma democracia plena, e de modo tão pacífico e tranquilo. O País atravessou, incólume, um período que escondia imensos riscos e grandes angústias.

Destaque-se que, sem a presença desse lúcido líder, não haveria nenhuma Aliança Democrática, por exemplo, para garantir o advento da Nova República. E, certamente, a população experimentaria nova frustração, semelhante, senão maior, do que a que teve em 24 de abril de 1984, quando a emenda que restituía nosso direito de eleger, diretamente, nas urnas, o nosso presidente, foi sepultada, numa jornada nada louvável de alguns congressistas.

É evidente que todos os méritos, daquilo que de positivo aconteceu no País, nos últimos 365 dias, têm que ser creditados ao presidente José Sarney. Mas não se pode deixar de ter em mente que quem confiou no seu tirocínio, quando a maioria não confiava nele, e quem o escolheu como companheiro de chapa, na última eleição presidencial indireta, realizada no colégio eleitoral, foi Tancredo Neves.

Quem desarmou os espíritos e pregou a convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas e grupos com pensamentos desiguais e muitos deles antagônicos foi esse ilustre mineiro. Quem repudiou os confrontos e a utilização das mesquinhas armas da intolerância e da inócua revanche, foi esse liberal, na mais exata acepção do termo. Quem balizou o caminho da transição, que desembocou na aprovação da Assembleia Nacional Constituinte, também foi ele. E a instalação desta, sem dúvida, será uma rara oportunidade dos brasileiros construírem, consensualmente, as instituições que desejam, com a elaboração de uma Constituição moderna, justa, cidadã e que consolide os anseios da maioria.

A importância histórica de Tancredo Neves, doravante, com certeza, crescerá de ano para ano, à medida em que os ideais que apregoou em praça pública, em inúmeros discursos e entrevistas, forem sendo concretizados. Certamente, o serão.

Quis a fatalidade que não fosse ele o executor do que planejou. Mas o destino, muitas vezes caprichoso e aparentemente ilógico, colocou o homem certo, na hora e local adequados, na figura do seu sucessor: o presidente José Sarney.

Todavia, o grande mérito dessa virada nacional, dessa volta por cima que o Brasil está dando, é, de fato, de todos nós, gente do povo, que tivemos a sensibilidade e o bom-senso de reconhecer o líder adequado, no instante em que ele se colocou diante de nós.

Fomos nós, cidadãos, que transformamos o nosso desencanto e angústia, de um ano atrás, em ânimo para realizar esta gigantesca tarefa de reconstrução nacional em andamento, que está muito longe de terminar, pois está, ainda, apenas no princípio.

Fomos nós que restauramos aquele tênue fio de esperança, que nem mesmo atinávamos que existisse dentro de nós (tão escondido e dissimulado estava, para se proteger de tantos e enormes golpes da adversidade) e o transformamos em confiança, motor das grandes realizações.

(Artigo publicado na página 17, Nacional, do Correio Popular, em 20 de abril de 1986).


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