Papéis
do escritor
Pedro J. Bondaczuk
O escritor tem vários papeis na sociedade contemporânea (como,
ademais, sempre teve nas que a precederam) a que sequer se dá
conta. Um deles, é o de guardião do idioma do seu país. Como
cumprir essa função é óbvio e a maioria a cumpre com razoável
zelo e competência. É utilizando-o com clareza e precisão e sempre
respeitando todas as suas regras, quer as semânticas, quer as
gramaticais.
Outro papel do escritor, e este muito mais complexo e abrangente, é
o de divulgar e consolidar valores duramente conquistados ao longo de
milênios pela humanidade – como justiça, respeito, lealdade,
honra, fidelidade, amor, amizade e solidariedade, entre outros –
resgatando os que estiverem em risco de desaparecer (e muitos deles
estão) e ampliando os demais, impedindo que se “esclerosem”, que
se transformem em mera retórica, em simples palavras, despidas de
vida e conteúdo.
Roger William Riis lembra que "somente nós, entre as coisas
vivas, descobrimos a Beleza, a amamos e criamo-la para os nossos
olhos e para os nossos ouvidos". Nessa mesma linha de
raciocínio, o autor teatral Thornton Wilder, na peça "Our
Town" (Nossa Cidade), coloca na boca de um personagem: "Oh,
Terra, és maravilhosa demais para que alguém te perceba. Acaso os
seres humanos têm consciência da vida enquanto vivem? Da vida em
todos os seus minutos?". Certamente que não têm. O ideal de
beleza, de cultura, de harmonia e de inteligência plena tem que ser,
igualmente, cultivado no dia-a-dia, por sua transcendência e
importância, sob pena de retroagirmos à barbárie. E ninguém tem
melhores condições de fazer isso do que o escritor.
Claro que há formas e formas de fazer isso. Em alguns casos, por
exemplo, abordagens diretas e lógicas sobre cultivo de valores
funcionam, mas nem sempre. Há quem considere esse tipo de
procedimento maçante, pedante e chato. Para não ter tais
características, o escritor tem que se valer do seu talento de
comunicação, para tornar o tema interessante e atrativo. Esse
assunto requer abordagens inteligentes, diria “estratégicas”,
como num campo de batalha. As palavras soam, via de regra, ambíguas,
e é preciso cuidado, rigor e bom-senso na sua utilização.
Muitas vezes, por exemplo, na criação de um personagem forte,
virtuoso ou absolutamente despido de virtudes e de ética
(rigorosamente imoral) transmitimos, ou temos condições de
transmitir, muito mais ensinamentos, de forma subreptícia e apenas
implícita, do que explicitando o discurso. Caso consigamos emocionar
o leitor com atos de nobreza acima do usual praticados pelo
protagonista da história que criamos (e narramos), transmitiremos
com maior eficácia a mensagem da importância dos valores da
civilização. Podemos, ademais, fazer o mesmo despertando-lhe
repulsa pelas atitudes do vilão. Para tanto, todavia, nosso enredo
terá que ser natural, espontâneo e, principalmente, verossímil.
Milan Kundera, em seu livro “A Imortalidade”, cita um
comportamento curioso, que eu já havia observado (até em mim
mesmo), mas que me sentia relutante em abordar. Receava ser
considerado “ridículo” se o mencionasse, embora tivesse
convicção de não me enganar nessa observação. O escritor checo
constatou, em determinado trecho: “Existe apenas uma coisa que
todos desejamos: que o mundo inteiro nos considere grandes pecadores!
Que os nossos vícios sejam comparados aos temporais, às
tempestades, aos furacões!”. Em contrapartida, parecemos nos
envergonhar das nossas virtudes (se as tivermos, claro), dos valores
que absorvemos, cultivamos e praticamos, com receio de sermos
considerados covardes, medrosos, fracos, tíbios ou sabe-se lá mais
o quê.
Mais adiante, Kundera acrescenta: “Cada um de nós deseja
transgredir as convenções, os tabus eróticos, e entrar com
embriaguez no reino do Proibido. Mas nos falta tanta audácia”.
Por que desse desejo pelo interdito, embora secreto, tão secreto que
não o admitimos nem a nós mesmos?
A prática nos mostra que os valores referidos antes – justiça,
respeito, lealdade, honra, fidelidade, amor, amizade e solidariedade
– de fato funcionam como pilares da civilização e do
relacionamento sadio entre pessoas, grupos sociais e nações. Caso
contrário... não teriam sobrevivido ao tempo e ao esquecimento.
O que ocorre com eles então? Acontece que os que deveriam
transmiti-los não o fazem com perícia e sabedoria. Apelam para
maçantes “sermões”, tratam a respeito com arrogância e
pedantismo e, com isso, repelem os leitores. Fazem com que seu
público-alvo, mesmo que inconscientemente, sinta desejos de
violá-los, derrubá-los, aniquilá-los, querendo (mesmo que não
fazendo) transgredir esses valores, como se fossem coisas muito
ruins, mas sem os quais a civilização não se sustentaria por nem
mais um dia sequer.
A educação, valor básico do homem, está em crise. Cristalizada em
dogmas, não acompanha a evolução da humanidade – da passagem de
uma sociedade industrial para outra de informação, por exemplo. Não
satisfaz, portanto, as necessidades sociais, em um mundo assoberbado
por novas questões e crescentes problemas. O fenômeno ocorre tanto
no Ocidente, quanto no Oriente. Verifica-se quer em países altamente
evoluídos política, econômica, social e tecnologicamente, quer em
Estados carentes, até inviáveis (nestes, logicamente, de forma mais
intensa).
É necessário exigir o seu resgate, com um enfoque mais ético e
humanístico. E não somente exigir, mas trabalhar nesse sentido. O
escritor, com seu poder de comunicação, com sua capacidade de
convencimento e criatividade e, em suma, com seu talento, tem
condições de ser esse agente resgatador. Desde que queira,
logicamente. Pense nisso.
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