Fim
da linha
Pedro
J. Bondaczuk
Você
é capaz, caro leitor, de identificar o autor deste texto?: “A
esperança não será a prova de um sentido oculto da existência,
uma coisa que merece que se lute por ela?”. E deste?: “Creio que
a verdade é perfeita para a matemática, a química, a filosofia,
mas não para a vida. Na vida contam mais a ilusão, a imaginação,
o desejo e a esperança”. Ou deste outro?: “A vaidade é um
elemento tão sutil da alma humana que a encontramos onde menos se
espera, ao lado da bondade, da abnegação, da generosidade”.
Tratam-se
de ideias expressas com coragem e com meridiana clareza por alguém
afeito a perscrutar a alma humana para compreender o que move o
homem, seus anseios, suas angústias, suas dúvidas e contradições.
São de Ernesto Sábato, um dos maiores escritores argentinos de
todos os tempos – e olhem que a Argentina os produziu e produz em
profusão – senão da América Latina e do mundo. E não exagero.
Pois
bem, esse intelectual, esse humanista, este libertário convicto
chegou ao “fim da linha”, em 30 de abril de 2011, após memorável
trajetória literária e sobretudo de vida, de 99 anos. Faltaram,
pois, 55 dias para tornar-se centenário, ele que nasceu em 24 de
junho de 1911, na cidadezinha de Rojas, na província de Buenos
Aires.
Apesar
de legar à posteridade uma sólida obra literária, de cerca de 40
livros, Sábato não se constituiu, propriamente, em unanimidade, nem
em seu país e nem fora dele. Talvez a razão seja que os que lhe
fazem restrições não leram com a devida atenção (ou sequer
leram) o que escreveu. Isso acontece com maior frequência do que se
possa supor.
Talvez
os que não o apreciam tenham interpretado de forma equivocada suas
ideias, embora ele as tenha exposto com clareza e sem nenhuma
ambiguidade. Por que não?. Sabe-se lá, pois, qual a razão de não
apreciá-lo! Da minha parte, coloco-o no mesmo patamar de Jorge Luís
Borges, que tenho como meu “guru” espiritual, cujas ideias e
colocações exerceram e exercem poderosa influência sobre o que
penso e o que escrevo. Ademais, como costumava dizer o saudoso
jornalista Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”.
O
primeiro livro de Ernesto Sábato foi uma coletânea de artigos de
cunho filosófico, intitulado “Nós e o universo”, publicado em
1945. A tônica dessa obra é a crítica da aparente neutralidade
moral da ciência. Nela o autor alerta para a desumanização que já
estava em andamento nas sociedades tecnológicas.
Seu
primeiro romance, publicado em 1948, foi “O túnel”. Nele chama a
atenção o esmero na composição dos personagens. Sua obra abrange
diversos gêneros da literatura, como contos, romances, novelas e
ensaios, com destaque em todos eles.
O
curioso é que Ernesto Sábato nem cogitava em ser escritor quando
ingressou na universidade. Pretendia ser cientista. Tanto que seu
primeiro título acadêmico foi um doutorado em Física, concluído
em 1938, na Universidade Nacional de La Plata. Quando criticou,
portanto, a adoração da ciência, como se ela fosse um “bezerro
de ouro” da atualidade, sabia o que estava dizendo. Tinha pleno
conhecimento de causa.
Ernesto
Sábato teve que esperar 16 anos para obter o reconhecimento
internacional, embora jamais tenha sido cogitado para o Prêmio Nobel
de Literatura, por exemplo. Foi reconhecido como um dos maiores
escritores do seu tempo só em 1961, com o livro “Sobre heróis e
tumbas”. E 13 anos depois, conseguiu a consagração, com um outro
romance: “Abandon, o exterminador”.
Se
não ganhou o Nobel, conquistou, pelo menos, a maior premiação
concedida a escritores de língua espanhola, o Prêmio Cervantes de
Literatura, em 1984. Esse ano, com certeza, ele deve ter guardado na
memória como sendo muito especial e por uma série de razões. Uma
delas foi o convite que recebeu para presidir seleto e ilustre grupo
de personalidades e intelectuais que compunham a Comissão Nacional
sobre o Desaparecimento de Pessoas, que publicou, ao cabo de seus
trabalhos, o memorável relatório “Nunca mais”, com descrições
e depoimentos das vítimas e sobreviventes da ditadura militar no
período de 1976 a 1983, expondo, em toda a sua crueza, os crimes
cruéis, o absurdo genocídio perpetrado contra seu próprio povo
pelos ditadores fardados.
Sempre
me questionei se viver além da média das outras pessoas é prêmio
ou severo castigo. Sou levado, infelizmente, a achar que seja a
segunda hipótese. O motivo? Creio que sequer é preciso expor. A
visão, por exemplo, não tarda a ficar comprometida e em alguns
casos, também a audição. A locomoção transforma-se num pesadelo,
drama perigoso, face ao risco constante de quedas, que tendem a
trazer duras consequências em termos de sofrimento, quer para a
pessoa idosa, quer para a sua família. Pior é quando a memória é
afetada e o indivíduo não consegue mais reconhecer nem mesmo os
entes mais queridos.
Os
últimos anos de vida de Ernesto Sábato foram dos mais sofridos e
aflitivos. Primeiro, foi acometido de uma doença nos olhos e, por
ordem médica, acabou proibido de fazer o que mais gostava: de ler e
de escrever. Imaginem o que isso significa para um escritor! Jorge
Luís Borges passou por isso e de forma até pior do que Sábato:
ficou cego. Ainda assim, continuou produzindo. Seus “olhos” e
suas “mãos”, porém, tiveram um nome: Maria Kodama, a fiel
secretária, que fez com que sua vida fosse quase normal até a
morte, ocorrida (se não me falha a memória) em 1984, na Suíça.
Sábato,
porém, acatou a determinação médica e deixou de ler e de
escrever. Mas não deixou de fazer arte, pelo menos enquanto pôde.
Dedicou-se aos pincéis e palhetas, ou seja, à pintura. Nos últimos
tempos, contudo, parecia ausente do mundo, imerso em mutismo e
solidão. Passava semanas, quando não meses, sem falar com ninguém,
como que imerso em lembranças. Se pensava em algo ou não, ninguém
saberia dizer. Fragilizado, como estava, bastou uma simples bronquite
para determinar o seu “fim de linha”.
Nesses
momentos de mutismo, vendo a morte se aproximar, é muito provável
que tenha constatado o quão verdadeira foi a sua afirmação, anos
antes, a propósito da solidão: “Estamos próximos, mas estamos a
uma distância incomensurável; estamos próximos, mas estamos sós”.
E não estamos?!
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