Estimular
é preciso
Pedro
J. Bondaczuk
O
amor pelos livros, quase sempre, surge na infância. Nesse aspecto,
muitos pais cometem um erro estratégico às vezes sem possibilidades
de correção e cujo resultado, quase sempre, é o oposto ao
pretendido. Em vez de “estimularem” os filhos à leitura,
mostrando-lhes o quanto essa atividade é fascinante e prazerosa, os
“obrigam” a ler. E o “tiro acaba saindo pela culatra”.
A
criança finda por associar esse desejável exercício da mente e do
espírito, até de forma inconsciente, a enfadonha obrigação, a uma
(para ela) desagradável e até intolerável imposição alheia, no
caso de um adulto, e fica privada, dessa forma, de transcendentais
descobertas e das delícias dessa incomparável aventura intelectual.
Estimular
é muito diferente de obrigar. Pior é quando na escola a criança
tem a infelicidade de contar com professores que fazem do ensino mera
profissão e não sacerdócio. Há mestres que confundem senso de
disciplina com autoritarismo. E que, nas aulas de leitura, em vez de
acudirem um aluno em dificuldades, punem-no e, não raro,
ridicularizam-no diante de toda a classe. Aí é que a coisa não
anda mesmo (e nem poderia andar).
Tive
a felicidade, por circunstâncias alheias à minha vontade, no
entanto benignas, de ter meu amor pelos livros despertado
precocemente. Narro minha experiência pessoal, esclareço, não para
ostentar eventual inteligência superior (que não tenho) ou para me
pôr em posição de exemplo a ser seguido. Longe disso. Faço-o
porque é a que (óbvio) conheço de perto e em detalhes e creio que
possa ser útil a alguém.
Tive
a ventura de contar com um pai amoroso, esclarecido e que exerceu com
proficiência não somente a paternidade, com tudo o que de positivo
ela implica, mas as funções suplementares de primeiro mestre – o
que me ensinou o be-a-bá –, de guia, de exemplo, de referencial e,
sobretudo, do primeiro e maior amigo dos tantos que tenho, que já
tive e que eventualmente ainda terei. Foi um homem notável, em sua
simplicidade (geralmente as pessoas exemplares e que fazem a
diferença no mundo são simples), o que pode ser atestado pelos que
o conheceram e com ele conviveram.
Meu
pai era (porquanto já faleceu) russo, tendo emigrado para o Brasil,
com a família, ainda adolescente. Subitamente, movido pelas
circunstâncias, teve que se adaptar a um país para ele então
estranho e a uma cultura, digamos, mais “exótica” do que a que
conhecera até então. Tudo era diferente: os ambientes, o clima, os
costumes, a língua e até o alfabeto. Muitos imigrantes custaram a
se adaptar. Alguns nunca se adaptaram e retornaram aos países de
origem. Outros tantos, aprenderam o português com extrema
dificuldade e até hoje não dominam adequadamente os cânones do
idioma, que falam com sotaque e com inúmeros erros gramaticais.
Com
meu pai não ocorreu nada disso. Encantou-se, de cara, com o país
que o acolheu. Assumiu seus costumes, assimilou sua cultura e, por
ter facilidade para línguas, não tardou a aprender também a nossa.
Perfeccionista, porém, não queria apenas “falar” o novo idioma,
mas pretendia fazê-lo bem. Ademais, sabia que para isso se tornar
possível, teria que ler, e muito. Mas havia um grande obstáculo: o
alfabeto. O nosso é o latino. O russo, é cirílico, que lembra,
ligeiramente, o grego antigo, do qual assimilou diversas letras.
O
que poderia ser (e era) barreira intransponível para vários de seus
conterrâneos (que jamais aprenderam a ler em português), não o era
para aquele homem admirável. Primeiro, comprou uma cartilha, dessas
em que aprendemos as primeiras letras. E decidiu que aprenderia a ler
em português junto com o filho de cinco anos (eu). Tornamo-nos
cúmplices nessa empreitada, para nós dois, fascinante aventura.
Ele, todavia, não me obrigou a nada. Fez aquele aprendizado parecer
uma brincadeira, mais interessante e estimulante do que qualquer
outra que eu fazia com as crianças da minha idade. E, de fato, era.
As
dúvidas que a princípio surgiam (e era natural que surgissem), as
esclarecia com os outros (colegas de trabalho, vizinhos, conhecidos).
Não tinha vergonha de perguntar o que não sabia. Mesmo sob o risco
de ser escarnecido ou encarado como tolo . Assim, aprendemos,
simultaneamente, a ler nesse fascinante idioma de Camões, que eu
aprendera a falar tão recentemente (como ele), em circunstâncias
dramáticas que narrei em uma de minhas tantas crônicas.
Da
cartilha, passamos às revistas em quadrinhos. Destas, o salto
seguinte foram os jornais. A seguir, veio a leitura da Bíblia. E
vieram os livros, múltiplos, variados, copiosos, profusos, sobre
praticamente todos os assuntos e gêneros: de romances a poemas; de
contos a ensaios e assim por diante. Tornamo-nos, ambos (e
simultaneamente) leitores compulsivos. Mas não por necessidade ou
por obrigação. Por puro prazer.
Aos
poucos, uma (a princípio pequena e incipiente) biblioteca foi
ganhando forma. E, apesar dó custo (os livros, entre nós,
convenhamos, nunca foram baratos, como deveriam ser), foi crescendo,
crescendo e crescendo. Não me lembro, durante um período, digamos,
de dez anos, de um só mês em que novos volumes não fossem
acrescentados ao nosso acervo. A leitura tornou-se hábito para nós
dois, que nunca o deixamos. Hábito, por sinal, apaixonante e
prazeroso.
Mesmo
quando já octogenário, com os olhos comprometidos por insidiosa
catarata, meu pai jamais deixou de ler. Imaginem com que dificuldade!
Ele, porém, nunca encarou isso como sacrifício. Sempre considerou o
livro o que diziam dele os também compulsivos leitores romanos
(posto que raros): “Nutrimentum spiritus”. Ou seja: “Alimentos
do espírito”. E é assim que o considero e que meu pai considerou
até seu último dia de vida. Apaixonei-me pela leitura porque nunca
fui “obrigado” a ler. Fui estimulado a fazê-lo, o que é bem
diferente. E... estimular é preciso.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment