Cascata
de ideias
Pedro J. Bondaczuk
Há pessoas que, a pretexto de serem seletivas em suas leituras,
desdenham livros de ficção, como romances, contos e novelas.
Argumentam que leem com o objetivo de aprender e não de se divertir.
Quem age assim, todavia, não sabe o que está perdendo. Nem toda
ficção tem seu ponto forte apenas no enredo.
Há romances, por exemplo, que pela profundidade, valem mais do que
anos de aulas de filosofia. Seus autores não se limitam a inventar
determinadas histórias, a criar personagens marcantes e a descrever
cenários, vestimentas, pessoas etc.
Seus livros contêm profundas reflexões, autêntica cascata de
ideias que nos induzem não somente a refletir sobre o que declaram
(em geral, na boca dos seus heróis e heroínas), mas a escrever
nossas próprias observações a respeito.
Há romances que lemos num só sopro, sem nos deter para anotar o que
quer que seja. São fluentes, dinâmicos, bem escritos, mas pouco
reflexivos. São factuais, como se fossem uma reportagem de jornal.
Divertimo-nos com eles, mas aprendemos muito pouco com sua leitura.
Há outros, todavia, que não dá para ler sem uma caneta nas mãos,
para grifar seus principais trechos. Ou, se quem os lê não quiser
estragar o volume, deve trazer sempre ao alcance uma agenda (como
costumo fazer) para anotar suas sábias reflexões.
Cito, de memória, sem ter que refletir muito, Machado de Assis,
Fedor Dostoievski, Leon Tolstoi, Jorge Luís Borges, Eça de Queiroz,
John Steinbeck e Aldous Huxley, entre os tantos ficcionistas que se
enquadram nessa seleta relação de escritores.
Tenho anotados trechos e mais trechos de romances desses autores (e
de centenas de outros), que já me proporcionaram ideias para uma
infinidade de crônicas e de ensaios. É como se travássemos
diálogos, em que na maioria das vezes concordo com suas reflexões,
acrescentando-lhes as minhas ou, em alguns casos, até as contesto, o
que é mais raro, confesso.
Há romances que nos sugerem ideias já a partir do próprio título.
Quando li, por exemplo, “Ronda grotesca”, de Aldous Huxley, pela
primeira vez (reli-o pelo menos três vezes), escrevi todo um livro,
tendo por tema o tempo e a morte (que nos ronda a cada segundo de
vida, sem que a percebamos, até nos colher súbita e traiçoeiramente
e pôr fim a essa aventura inexplicável e breve).
Desse mesmo autor, o livro “Sem olhos em Gaza” sugeriu-me a
alegoria de Sansão, aquele cuja força descomunal estava nos cabelos
e que a perdeu quando Dalila cortou-lhe as madeixas. Prisioneiro dos
filisteus, na cidade de Gaza, teve os olhos vazados, numa tentativa
dos adversários de neutralizá-lo de vez.
Entendi o título como metáfora da nossa obsessão por glória e
fortuna, o que nos cega, literalmente, e não permite que vejamos o
que de fato importa. Ademais, o romance não tem nada a ver com a
alegoria bíblica de Sansão, como o título pode sugerir. Mas não
foram apenas os títulos dos romances de Huxley que me fascinaram,
claro. Foram suas reflexões, dignas de serem repetidas e citadas nos
mais variados textos e ocasiões.
Ler ficção, portanto, desde que escolhamos o autor adequado, está
longe de se constituir em mero lazer, como muitos pensam, e muito
menos em perda de tempo. Colhi, por exemplo, preciosas pérolas de
sabedoria e verdade no romance “A cidade e a serra”, de Eça de
Queiroz.
“Guerra e paz”, de Leon Tolstoi, rendeu-me mais de duzentas
anotações e dezenas de crônicas. Reitero, pois, que muitos
romances acabam sendo mais úteis para nós, que vivemos de texto, do
que centenas de aulas de filosofia.
Para ficar em âmbito doméstico, menciono o nosso maior escritor de
todos os tempos, Machado de Assis. Recentemente, li uma antologia de
seus contos, editada, em dois volumes, pela Companhia das Letras, que
reuniu cerca de duzentas histórias do “Bruxo do Cosme Velho”. E
não há uma única pela qual tenha passado batido e não haja
anotado alguma reflexão útil e soberba.
Quanto aos seus romances, todos, sem exceção, me encheram de idéias
e me ensejaram textos e mais textos, alguns publicados em livros e
outros tantos circulando internet afora, em sites e blogs os mais
variados.
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