Quando
a mente se desarranja
Pedro J. Bondaczuk
Os desarranjos mentais, tragédia para quem sofre (e para suas
famílias também), constituem-se em temas recorrentes, muito
explorados em literatura. Há tempos este é um dos meus assuntos
preferidos, pelos mistérios que envolve e pelo tanto de preconceito
que o cerca. Claro que não estou sozinho nessa fascinação. Embora
seja de se deplorar a situação das vítimas desses males, não
deixa de ser morbidamente fascinante para quem a observa de fora.
Centenas, milhares de poemas, crônicas, ensaios, contos e romances
já foram escritos (e certamente outro tanto ainda o será) sobre o
que se chama, de forma generalizada, de “loucura”. Esses
desarranjos são vários, não um só, e vão desde uma simples
neurose, à profunda psicose. Desde uma depressão, que abala a vida
de quem a sofre, mas não a alheia da realidade, à esquizofrenia.
Mas todos são tratados praticamente da mesma maneira.
O doente mental é, desde eras muito remotas, vítima de
incompreensão e de preconceito. Antigamente (mas não tanto assim),
passava por terríveis torturas físicas (além das psíquicas
inerentes à sua doença). O vulgo entendia que essas pessoas estavam
“possuídas por demônios”. O pobre infeliz que “não batia bem
da cachola” era acorrentado, levava tremendas surras, pois se
acreditava que desta forma os supostos espíritos malignos eram
passivos de expulsão e não raro morria nas mãos da turba ignara,
vítima desses maus-tratos e agressões. É caso de se perguntar:
quem era o louco na história, a vítima ou seus algozes?
Em pleno século XXI, esses doentes mentais continuam sendo tratados,
em muitos lugares, de forma tão desumana, indigna e até vil como
antigamente. São encerrados em manicômios sombrios, sórdidos e
insalubres, dopados com tranquilizantes que não só os acalmam mas
os tornam praticamente “vegetais”, recebem choques na cabeça ou
têm partes do cérebro extirpadas (as lobotomias) etc. e isso mesmo
em casos que não comportam internações e que poderiam e deveriam
ser tratados ambulatorialmente, e no seio das respectivas famílias.
Estas, todavia... os repudiam. Querem se livrar de qualquer jeito
deles.
Um dos psiquiatras que mais combateram esses procedimentos absurdos e
desumanos para com os doentes mentais – rotulados, todos,
genericamente, de “loucos” – foi o escocês Dr. Ronald David
Laing, uma das maiores sumidades na matéria do século XX e que
morreu em 1989. Ele propugnou, ao longo de toda a carreira médica,
que o tratamento mais eficaz para esses pacientes, notadamente para
os esquizofrênicos, não deveria ser, jamais, a hospitalização e
nem o eletrochoque, mas apenas a comunicação. Mas com uma condição:
que essa fosse estabelecida, apenas, quando o doente depositasse
plena confiança em seu médico.
Laing escreveu: “Derrubar os muros dos manicômios, lutar contra o
feroz isolamento dos doentes, preparar um diálogo possível com os
esquizofrênicos, deixá-los ir ao fundo de seus delírios,
arriscando-se a que se percam completamente ou voltem curados,
recusar soluções efêmeras e opressivas, como os calmantes e os
eletrochoques”. Muitos especialistas acataram sua forma de
tratamento, advinda de profunda observação, e o índice de cura foi
muito alto. Outros... Persistiram (e boa parte persiste),
teimosamente, na forma cruel e desumana de tratar os doentes. O
médico escocês era, principalmente, especializado em esquizofrenia,
doença que definiu assim: “A pessoa que de repente não quer mais
corresponder à imagem que sua família ou o meio social lhe impingiu
refugia-se no irreal, no imaginário, torna-se um esquizofrênico”.
“Ora”, dirá o leitor, “se o critério for este, então todo o
mundo tem um pouco de esquizofrenia”. Quem sabe se não tem, de
fato?! O Dr. Laing acrescenta, à guisa de explicação: “Sanidade
e loucura são estabelecidos pelo grau de dissintonia existente entre
duas ou mais pessoas. O problema está no contexto onde se fazem as
coisas: uma mulher que reza fervorosamente no interior de uma igreja
pareceria absurda se tivesse comportamento idêntico no meio da rua”.
Sabem o que é mais curioso? É a origem da
palavra “louco”. Ela é uma corruptela exatamente do seu oposto,
ou seja, de “lógico”. E, de fato, há alguma “lógica” na
insanidade mental, posto que distorcida e doentia. Há quem
considere, por exemplo, a loucura o antônimo de “racionalidade”.
Não é. O Dr. Isaías Pessotti, professor da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto, explica porque: “A racionalidade não é a
perfeição. Pode ser até a loucura, quando a serviço da violência
do instinto”.
Já o filósofo francês, Michel Foucault, no
livro “História da loucura”, sustenta a tese que toda pessoa
imaginativa tem componentes característicos do desarranjo mental.
Exagero, claro. E o Dr. Pessotti explica porque: “Se pessoas
rotuladas como loucas foram grandes criadores, trata-se de pessoas
muito ativas que, por acidente, ficaram loucas. Ou se trata de
pessoas que na situação acrítica de marginalização (como loucas)
revelam uma criatividade que a vida ‘normal’ impedia de se ver ou
de se manifestar. Mas a loucura não é libertação do espírito.
Muito ao contrário. É a escravidão do pensamento”.
Por falar em loucura, um dos livros que mais me
impressionaram a respeito é o romance “Onze minutes”, de Paulo
Coelho, best-seller mundial, que logo sera transformado em filme.
Acho, como Pessotti, uma estupidez a glamurização dos desarranjos
mentais, como se se tratasse de alguma virtude, de aptidão ou de
cacoete e não de doença. Como acho estúpido, também, decretar a
morte em vida de quem passa por esse drama, como se não tivesse
cura. Alguns casos não têm mesmo, mas boa parte é curável com a
terapia simples e humana do Dr. Ronald David Laing: a do amor. “Uma
palavra pode matar uma pessoa. Uma simples palavra colocada no lugar
certo, no momento certo, pode mudar toda uma vida”, observa o
ilustre psiquiatra escocês. E pode até curar alguns dos mais sérios
desarranjos mentais. O que não podemos, sadios mentalmente ou
doentes, é nos isolar e nos trancar dentro de nós mesmos.
Porquanto, como o Dr. Laing resume, “pode-se dizer que a loucura é
você não ter nenhum amigo”.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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