Obra
inacabada
Pedro
J. Bondaczuk
As
anotações de alguns escritores, aquelas que eles fazem em papel
qualquer – como o usado para embrulhar pão nas padarias, por
exemplo, ou como maços de cigarro, guardanapos etc. – e que são
meros lembretes, para não se esquecerem de determinados detalhes em
livros que estejam escrevendo ou que planejem escrever, e que depois
de utilizar têm a intenção de jogar fora, (mas por alguma razão
não jogam), são peças interessantíssimas para quem pesquisa
métodos de produção de textos. São notas espontâneas, pessoais,
íntimas, particularíssimas, feitas, portanto, para eles mesmos e
não para “consumo público”.
Tive
acesso a esses rascunhos (que nem chegam a ser isso), de vários
escritores meus amigos, após sua morte, com a autorização das
famílias. E fiquei fascinado com esse “tesouro” literário que o
público provavelmente jamais conhecerá. Alguns pensamentos e
parágrafos de textos tive o capricho de anotar e de comentar em
minhas crônicas, dando, claro, o devido crédito. Sei que, nestes
casos, cometi inconfidências, porquanto não fui autorizado pelos
autores (já mortos) para tal. Mas creio que esse pecadilho é
perdoável. Estou certo que, se ressuscitassem, eles me perdoariam.
Afinal, não agi assim para empanar sua memória, mas para
salvaguardá-la.
Quem
quiser, algum dia, fazer o mesmo em relação às minhas notas,
lembretes, recados, esboços e sabe-se lá mais o quê, esteja à
vontade. Não tenho nada de comprometedor, de secreto, de
impublicável que queira esconder. Tenho uma gaveta lotadinha desses
papéis. Periodicamente faço uma limpeza em regra nela. Entretanto,
as anotações que entram ali são em quantidade muito maior do que
as que saem. Portanto, ela jamais irá se esvaziar. Pelo menos, é o
que suponho.
Uma
coisa ficou clara para mim: boa parte dos escritores morre sem poder
ele, e não a morte, dar sua obra por acabada. Não posso garantir
que assim seja com todos, pois não tenho como comprovar, mas
desconfio que, cada qual em sua medida, a totalidade dos literatos
passa por esse tipo de frustração. Alguns desses livros inacabados
estavam em fase de revisão. Nesses casos, e se o escritor gozar de
algum prestígio nos meios editoriais, as editoras se encarregam de
dar um jeito de publicar, com a ressalva de que se trata de
publicação póstuma. Sabe-se lá, porém, quais as mudanças que o
autor pretendia fazer neles e que, se não morresse antes,
provavelmente faria.
Caso
bastante famoso, referente a anotações, é o do grande, imenso,
extraordinário e todos os adjetivos de excelência que lhe vierem à
cabeça, Fernando Pessoa. Quando morreu, deixou, intocado, um baú
carregadinho de papéis inéditos, que poderia ser comparado à
alegoria da cornucópia da abundância. Por que? Porque a riqueza de
ideias e de saber literário nele contidos parece inesgotável. Esse
material já rendeu, sem exagero algum, uma centena de livros, dos
mais diversos “organizadores” desses papéis, e resta, inédita,
ainda, uma quantidade que eu diria três vezes maior do que a já
analisada, revisada, posta no papel, impressa e publicada.
Já
imaginaram se Fernando Pessoa tivesse tempo, saúde e disposição
para trabalhar nesse material, digamos, “bruto”, o quanto a sua
obra seria ainda maior do que já é? Citei esse caso específico
porque ele é bastante conhecido no mundo literário e ninguém
poderá me acusar de estar inventando. Mas poderia mencionar algumas
dezenas de outros que, no entanto, não posso comprovar.
Se
eu tivesse o poder de modificar a realidade (claro que não tenho) e
principalmente a natureza, introduziria na vida um dispositivo
qualquer que não permitisse que escritores adoecessem, se tornassem
senis e, principalmente, que morressem, antes de concluírem suas
obras. Alguns, mais agitados, criativos e prolíficos, se tornariam,
com certeza, “eternos”. São os que o tempo todo estão com
ideias novas, à espera de oportunidade de as desenvolver e
transformar em poemas, romances, novelas, contos...
Conheço
escritores de noventa anos de idade, que quase não conseguem nem
andar, sem condições de escrever, pois as mãos trêmulas impedem,
que não tiveram a felicidade de aprender a utilizar o computador,
com livros e mais livros prontos na cabeça. O pior de tudo é que,
quando “falam” as suas criações, a única forma que têm de
comprovar que elas existem e estão na sua memória, são
ridicularizados, não raro até por parentes muito próximos, que
acham que estejam caducos. Muitos deles, porém, são de uma lucidez
de fazer inveja a garotões de vinte e cinco ou trinta anos.
Estes
vão morrer deixando, certamente, suas obras inacabadas, por falta de
condições de acabá-las. Suas anotações (quando as têm), um dia
irão para o lixo, numa das tantas “arrumações” que as pessoas
costumam fazer em suas casas, em que raramente têm algum critério.
Nelas, se jogam fora preciosidades e se guardam quinquilharias, estas
sim inúteis, como se fossem tesouros.
Há
escritores que têm a ventura de contar com herdeiros lúcidos e
cultos, que sabem valorizar essa riqueza intelectual e que preservam
tais papéis, transformando as casas em que viveram em museus e
fundações. Estes, contudo, são raros. Vocês já imaginaram quanta
coisa se perdeu para sempre com a destruição de anotações dos
nossos luminares da literatura, que não puderam acabar o que
começaram, ou seja, a sua obra?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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