O
mago da palavra
Pedro
J. Bondaczuk
O poeta, à sua revelia, às
vezes faz o papel de profeta. Prevê fatos, acontecimentos positivos
e negativos e, em casos extremos, a própria morte. Leiam, por
exemplo, estes versos, de Mário Chamie, do poema “O mago” :
“O mago
comia as ervas
comia os frutos
e explicava
o caminho
do rio sem desvio
No seu curso.
em decúbito
no púlpito
o mago morreu
de mal súbito”.
Considero mago, no caso, o
próprio poeta. Mago das palavras, que sabia expressar, como ninguém,
os sentimentos mais profundos e recônditos que lhe iam na alma (e
que vão na de cada um de nós).
E por que me refiro a ele no
passado? Porque, pela contingência natural da vida, o poeta Mário
Chamie, nascido em Cajobi, em 1º de abril de 1933, nos deixou em 3
de julho de 2011, vítima de um câncer que o debilitou e findou por
suprimir-lhe a vida. Todavia, seu legado, tanto administrativo,
quanto, principalmente, poético, permanece a marcar sua bem-sucedida
passagem pelo mundo.
Como secretário municipal de
Cultura de São Paulo, por exemplo, tem, a seu crédito, obras
marcantes e duradouras, que refletem, sobretudo, lucidez e visão de
futuro. Como se vê, não exagero ao considerá-lo, além de poeta,
profeta. Criou, entre outras entidades, a Pinacoteca Municipal de São
Paulo. Não se contentou só com isso. Nunca considerava suficiente o
que fazia em favor da difusão da arte e, por extensão, da cultura.
Encabeçou, pois, a criação do Museu da Cidade de São Paulo. Ainda
considerava pouco. Criou, finalmente, o Centro Cultural de São
Paulo. E só mais não fez, porque o tempo e as circunstâncias não
o permitiram.
Legado tão expressivo quanto
o que deixou como secretário, também o fez (e provavelmente muito
mais até) como poeta, de linguagem refinada e estilo coloquial. É
um dos meus preferidos na literatura brasileira. Merece, como
ninguém, a designação que lhe dei – e não é de agora, mas de
décadas, quando tomei contato pela primeira vez com sua poesia, na
qual vislumbrava muito de magia – de “mago da palavra”.
Mário Chamie deixou doze
livros publicados, pela ordem: “Espaço inaugural” (1955), “O
lugar” (1957), “Os rodízios” (1958), “Lavra lavra” (1962),
“Now tomorrow mau” (1963), “Indústria” (1967),
“Planoplenário” (1974), “Objeto selvagem” (1977), “Sábado
na hora da escuta” (1978), “A quinta parede” (1986), “A
natureza da coisa” (1993) e “Caravana contrária” (1998).
De um poeta tão prolífico e
produtivo, seria lícito esperar que conquistasse muitas premiações
literárias. E Mário Chamie conquistou, pelo menos seis, e das mais
relevantes do País, a maioria com livros de poesia. A exceção foi
“Linguagem virtual”, em que demonstrou imenso talento de ensaísta
e com o qual ganhou dois prêmios: o Prêmio Governador do Estado de
São Paulo, em 1974 e, dois anos depois, em 1976, o prêmio de Ensaio
da Associação Paulista dos Críticos de Arte.
Ganhou, também, o cobiçado
Jabuti, na categoria de poesia. E, quem conhece sua obra a fundo sabe
que merecia muitos, muitíssimos mais, por sua originalidade,
criatividade e capacidade de comunicação. Formado em Direito pela
Universidade de São Paulo, foi convidado a ministrar aulas e
proferir palestras em renomados centros universitários do exterior,
como em Harvard, por exemplo.
Sem atribuir papel menor a
essas atividades (e nem cometeria tamanha heresia), concentro, por
razões óbvias, minha atenção em sua atuação literária, quer
como poeta, quer como ensaísta ou crítico dos mais cultos,
competentes e refinados. E quando se entra nesse campo, é forçoso
citar o caráter inovador da sua obra, notadamente a poética, como
dissidente do concretismo e fundador da poesia-práxis. Além dos
livros que citei, publicou, entre artigos, crônicas etc., mais de
140 trabalhos literários, boa parte dos quais traduzida para 57
idiomas. Ressalto que muitos dos seus dados biográficos extraí da
enciclopédia eletrônica Wikipédia, em cuja exatidão confio.
Como se vê, minha admiração
e respeito pelo escritor Mário Chamie não é exclusiva, mas
compartilhada pelos mais cultos e renomados colegas de letras e,
sobretudo, leitores. O sociólogo Gilberto Freyre, por exemplo, assim
se referiu ao poeta paulista: “A criatividade se apresenta tão
dele tão não somente dele que é como se palavras, ou relações
ent6re palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo
inventadas”. Como se vê, era um mago que, em vez de tirar coelhos
da cartola, tirava beleza, grandeza e transcendência.
Como sempre faço ao me
referir a poetas, pincei, em um dos seus livros, este poema, que
reproduzo abaixo, embora ao procurar fazer a seleção, foram tantos
os que me chamaram a atenção, a ponto de me deixar confuso. Dada
minha hesitação entre centenas deles, sorteei o abaixo, escrevendo
os títulos em pedaços de papel e deixando que o acaso decidisse
qual partilharia com vocês. Quis a sorte que fosse este:
Abertura
“No espaço do campo, passa
o homem e sua miragem,
no espaço da cidade, dorme o
homem em sua passagem.
No espaço da consciência,
gera o vírus a sua voragem.
Por todos esses espaços, de
surda força indomável,
passa o espaço da palavra com
sua selva sem margem.
Na selva dessa paisagem, no
centro de sua arena,
age a força do poema, meu
objeto selvagem”.
Como caracterizar um poeta
assim? Como classificar um prestidigitador de palavras que as
manipula com tamanha naturalidade e elegância e que consegue extrair
o máximo de significados delas? Pode até ser que a designação que
me veio à mente não seja a adequada, por ser aquém do seu talento.
Para mim, todavia, Mário Chamie foi e será sempre o mago. O mago
das palavras.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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