Fatos
subversivos
Pedro
J. Bondaczuk
O
jornalista é testemunha ocular da história. Relata os fatos,
esmiuçando-os, detalhando-os e pormenorizando-os, tão logo
acontecem. Caso se utilize dos meios eletrônicos de comunicação,
não raro dá sua informação simultaneamente ao acontecimento. Dada
a urgência da divulgação, todavia, raramente traz aos leitores as
consequências do que aconteceu e que ele noticiou. E quando o faz,
fá-lo com baixa margem de acerto.
Pudera!
A rigor, esse nem mesmo é seu papel. Essa função cabe ao
historiador que, ao contrário do jornalista, tem todo o tempo que
quiser para colocar o fato ocorrido no devido contexto. Liga-o a
outros, pesquisa documentos, interpreta-os e forma um quadro
sequencial coerente e preciso (nem sempre, é verdade) de determinado
período da vida de um povo. O que perde em atualidade, ganha em
profundidade.
Raros
são os jornalistas que, simultaneamente, também têm a formação
de historiadores. O britânico Timothy Garton Ash é exceção a essa
quase regra. Autor de nove livros, o que faz ele próprio classifica
de “história do presente”. Seu cenário preferencial é a
Europa, continente que protagonizou, da última década do século XX
para cá, extraordinárias e dramáticas mudanças políticas,
econômicas e sociais. E também culturais, claro. Entre tais
mudanças estão a queda do Muro de Berlim seguida, logo depois, da
reunificação da Alemanha; o surpreendente colapso da União
Soviética; o sangrento “estilhaçamento” da Iugoslávia, com as
guerras da Bósnia e do Kosovo; as “revoluções de veludo” da
Polônia e da antiga Checoslováquia e vai por aí afora.
Acabo
de ler o mais recente livro de Garton Ash, “Os fatos são
subversivos” (lançado em 2011 no Brasil pela Companhia das
Letras), que ganhei de presente num Dia dos Pais da minha filha mais
velha, a Tatiana. Trata-se de uma coletânea de ensaios, que
nasceram, originalmente, como artigos e foram publicados como tal na
ocasião dos acontecimentos abordados. Nem todos, todavia. Alguns são
esboços de palestras e conferências proferidas em renomados centros
culturais europeus.
A
maioria dos acontecimentos tratados – notadamente os da última
década do século XX – pelo autor, eu noticiei. Na ocasião eu era
editor de política internacional do Correio Popular de Campinas e me
debruçava, não apenas como jornalista, mas como estudioso da
realidade do meu tempo, sobre análises e mais análises de
especialistas, para entender os antecedentes e os consequentes de
cada um desses acontecimentos.
Escrevi
artigos a propósito sem, claro (e compreensivelmente) a devida
profundidade que os fatos requeriam. Por mais que tentasse, não
conseguia contextualizar as profundas transformações que estavam em
andamento na Europa. O livro de Timothy Garton Ash faz isso e num
estilo claro, preciso e gostoso de se ler.
“Os
fatos são subversivos”, porém, não trata somente de política.
Faz incursões sobre o panorama cultural, notadamente o literário,
no continente europeu. Ninguém é mais habilitado do que o autor
para “virar pelo avesso” a Europa contemporânea e explicar por
que e como as coisas aconteceram e no que isso tende a resultar. Tudo
o que escreveu é matéria-prima de uma de suas tantas atividades: o
magistério. Garton Ash é professor de Estudos Europeus na
ultratradicional Universidade de Oxford.
Trata-se
de um intelectual daqueles que classifico de “homens dos sete
instrumentos”, pela multiplicidade de funções que exerce. Fico me
perguntando: “onde encontra tanto tempo para fazer tudo isso e,
principalmente, tão bem?”. Além de lecionar em Oxford, ele é
diretor do Centro de Estudos Europeus no Saint Anthony’s College.
Até aí, tudo bem
Mas
Garton Ash é presença constante na imprensa, ora com artigos, ora
com extensos ensaios. Volta e meia, é convidado para proferir
palestras e conferências em diversas partes do mundo. E esbanja
talento, conhecimento e erudição. Conta, há já alguns anos, com
uma coluna semanal no tradicional “Guardian”, de Londres, com
excelente distribuição fora da Grã-Bretanha. Publica,
regularmente, no “New York Review of Books” (daí estar tão
atualizado com o panorama literário nos principais centros culturais
do mundo).
Mas
não é só. Esse misto de jornalista, historiador, professor e
conferencista escreve, também, para o “The New York Times”,
“Washington Post”, “Prospect”, “The Wall Street Journal”
e “The Globe and Mail”. Ufa! Reitero: haja tempo e fôlego para
tanta atividade!
Garton
Ash detecta crise nos vários veículos de comunicação, em virtude
dos elevados custos na coleta racional e precisa das notícias, o
que, no seu entender, tende a comprometer a qualidade do jornalismo.
Observa: “Com
a mudança da economia da coleta de fatos, encontram-se novos modelos
de receita para muitas áreas do jornalismo –– esportes,
negócios, diversão, interesses especiais de todo tipo ––, mas
os editores ainda tentam descobrir como sustentar o caro negócio do
noticiário internacional e do jornalismo investigativo. Enquanto
isso, as sucursais no estrangeiro de respeitados jornais estão
fechando como luzes de escritório que um zelador apaga em sua ronda
noturna”. E não é o que acontece?
Sobre
o futuro da atividade jornalística, Garton Ash observa: “Eu
trabalho tanto em universidades como em jornais. Dentro de dez anos,
as universidades ainda serão universidades. Quem sabe o que será
dos jornais?” Pois é, quem sabe? Enquanto isso, os fatos
continuarão ocorrendo, sem aviso prévio, mudando, ora para melhor,
ora para muito pior, a realidade dos povos e, por extensão, do
mundo. Ou seja, seguirão com o caráter que sempre tiveram: sendo,
sobretudo, “subversivos”.
Observação
interessante a propósito é a feita pelo jornalista, escritor e
professor titular da Universidade do Rio de Janeiro, Muniz Sodré. Em
um excelente artigo publicado em agosto de 2011 no “Observatório
de Imprensa”, intitulado “Serão mesmo os fatos subversivos?”,
afirmou: “Esse tipo de preocupação (o da consciência cívica com
a história do presente) ou de cuidado ético aplica-se não apenas à
hipótese da mentira deliberada, mas à realidade da pulverização
do fato no circuito das redes sociais e do ‘jornalismo de internet’
de um modo geral, sob o influxo da ficcionalização da realidade. Se
antes, em plena era do impresso, predominava em publicações
semanais de luxo uma espécie de ‘jornalismo de butique’ em que
os fatos eram travestidos de retórica literária, hoje se consomem
‘átomos’ de fato, que são despolitizantes, porque recalcam a
argumentação coerente dos problemas sociais e impedem o
aparecimento de uma narrativa completa sobre a vida pública, em
favor do boato e do mexerico privado”. E não é o que ocorre?
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