Delito
e regeneração
Pedro
J. Bondaczuk
Um dos melhores livros que já
li, sobre a iniquidade de algumas leis e o excessivo rigor do aparato
de justiça, por estranho que pareça, não foi nenhum tratado
jurídico, ou antropológico ou filosófico. Foi, pelo contrário, um
romance, uma obra de ficção. Seu autor, portanto, não é nenhum
jurista de renome, nem sociólogo com invejável currículo e nem
filósofo fundador de alguma escola qualquer: é, apenas, um
escritor, posto que dos mais reconhecidos e laureados da literatura
mundial. Portanto, está despido de dogmas e axiomas que não raro
intoxicam o espírito e impedem um raciocínio lógico, humano e,
sobretudo, generoso, complacente com as deficiências e contradições
humanas.
O livro é “Os Miseráveis”.
O autor, Victor Hugo. Na obra em questão, o autor passa a sua
mensagem através da conturbada trajetória do personagem central,
Jean Valjean. É mediante suas peripécias que o escritor nos traça
a conturbada situação política e social do seu país, a França,
num determinado período de sua história, o século XIX, mais
especificamente no que se convencionou chamar de Insurreição
Democrática, que começou com o levante popular de 5 e 6 de junho
de 1832.
Esse movimento foi uma
tentativa dos “legitimistas” (os que eram favoráveis à volta
dos Bourbons ao trono francês) e dos republicanos, inclusive
bonapartistas, liderados pelo futuro Napoleão III, de depor Luís
Felipe I (apelidado de “Rei Burguês” ou “Rei Cidadão”, por
governar o país sob os princípios da Revolução Francesa). A
revolta foi facilmente sufocada, sem maiores consequências. Mas o
ambiente era de turbulência, o que se manteve até o fim do seu
reinado, em 1848.
O enredo, em seu todo, soa um
tanto inverossímil, mas o talento de Hugo finda por nos convencer
que o tipo de história que narra é possível de acontecer na vida
real. O que vale, porém, são suas reflexões sobre a preponderância
das leis, sobre a possibilidade ou não de regeneração de quem
delinque e sobre a tragédia que é o rigor excessivo de uma
sentença, a ponto de transformar qualquer homem em uma fera
insensível e desesperada.
Jean Valjean pratica um
pequeno furto por causa do absoluto estado de necessidade em que
estava. Isto é, desempregado, não tinha sequer o que comer e com o
que alimentar a família. Entra, em determinado dia, em uma casa e lá
furta pão para se alimentar. Mas é preso pelas autoridades.
Levado ao Tribunal de
Faverolles, é julgado e condenado a uma duríssima pena: dez anos
nas galés. Cumpre, integralmente, a pesada sentença e é posto em
liberdade, mas com a condição de se apresentar, regularmente, às
autoridades policiais. Se não cumprir essas determinações, voltará
à cadeia, para nunca mais sair. Valjean é obrigado, por isso, a
portar o “passaporte amarelo”, que o identifica como
ex-presidiário, e a exibir esse documento, sempre que solicitado.
Claro que isso faz com que se
sinta marginalizado e, sobretudo, abandonado por todos. Ninguém o
ajuda, a não ser o Bispo de Digne, Charles-François-Bienvenu
Myriel. Todavia, Valjean, em vez de mostrar gratidão ao seu único
benfeitor, torna a delinquir. Rouba toda a prataria da casa do
sacerdote. Não tarda, porém, a ser preso.
Como se vê, mete-se, outra
vez, em apuros e corre o risco de nunca mais ser um homem livre.
Levado, contudo, por policiais à presença do Bispo, este não só
não o acusa do crime praticado, como, ainda, depõe a seu favor.
Myriel assegura às autoridades que “deu” a prataria a Valjean. E
acrescenta que este “esqueceu de levar os castiçais”.
Este gesto de bondade muda,
pelo menos por algum tempo, a vida do marginal. Com a venda dos
objetos, ele reúne um capital e estabelece-se como empresário.
Volta, sobretudo, a acreditar nas pessoas. Trabalha, prospera e, com
o passar dos anos, torna-se respeitável homem de negócios. Vai até
mais longe: elege-se prefeito de Digne. Torna-se pessoa admirada e
respeitada pela bondade. Quando solicitado, nunca se nega a ajudar a
quem precisa.
O romance de Victor Hugo, “Os
Miseráveis”, não termina com a regeneração do principal
personagem, Jean Valjean. Sua vida sofre nova, dramática e profunda
reviravolta. E tudo por causa do seu passado de ex-presidiário.
Ironicamente, essa mudança para pior acontece em um momento em que
ele pratica um ato de extrema bondade, de heroísmo até, ao salvar
uma vida.
Certo dia, ao passar por
determinada rua, topou com um aldeão preso embaixo de uma pesada
carroça, prestes a ser esmagado por ela, podendo morrer se nada
fosse feito. Ninguém conseguia tirar o pobre infeliz dali e, se nada
fosse feito, ele não teria salvação. Valjean, porém, foi ao
limite de suas forças para resgatar a vítima. Usando as suas
costas, num esforço sobre-humano, conseguiu tirar o aldeão debaixo
da carroça e, socorrido devidamente, o homem sobreviveu.
Ocorre que o heroico
personagem cruzou com Javert, chefe de polícia local, que assistiu a
toda a cena do resgate. Tratava-se de um servidor inflexível, que
cumpria a lei sempre ao pé da letra, sem que lhe passasse pela mente
sequer um mínimo de clemência. Seu raciocínio, cristalizado por
anos de exercício da profissão, era: “Errou? Tem que pagar! Não
importa o que tenha feito de bom antes ou depois de delinquir”.
Dotado de excelente memória,
Javert reconheceu, no herói, o prisioneiro das galés, que havia
encontrado uma vez. Por isso, investigou a fundo o passado do
prefeito e descobriu o que suspeitava: que se tratava, de fato, de
Jean Valjean, procurado pelas autoridades por não haver cumprido os
termos da condicional.
Sua certeza, no entanto, fica
abalada face a uma nova circunstância. Ocorre que um prisioneiro,
retardado mental, levado a julgamento por um outro delito, assegura
ser ele o verdadeiro Jean Valjean. Várias testemunhas confirmam
isso, no afã de livrar o prefeito das acusações.
O senso de bondade e de
justiça deste, todavia, desenvolvido ao longo dos últimos anos, os
de prosperidade e liberdade, prevalece no ex-condenado regenerado.
Não poderia permitir que um inocente arcasse com suas culpas. O
verdadeiro Jean Valjean, portanto, presente no tribunal, se
identifica e diz que o acusado, que tentava se passar por ele, era
inocente.
Sua confissão deflagrou
implacável caçada de Javert para prendê-lo. Afinal, como o chefe
de polícia apregoava, “a lei tinha que ser cumprida!”. E assim
Valjean retornou à prisão, de onde fugiu, pulando ao mar, indo
refugiar-se em Paris.
No romance de Hugo, o
personagem se deu bem, após uma série de outras tantas peripécias
que, claro, não vou relatar. Reencontrou, por exemplo, Cosette, a
filha que adotou, que se casou com Mário, estudante de Direito, e
terminou seus dias em paz e com tranquilidade. Na vida real, porém,
não é o que, via de regra, acontece. Vidas são irremediavelmente
arruinadas por causa de delitos leves, que poderiam ser punidos na
proporção da sua gravidade, mas que nunca são. São as leis,
portanto, cristalizando injustiças. Voltarei, oportunamente, ao
assunto.
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