O
que poderia ter sido?
Pedro
J. Bondaczuk
O
talento literário – como ademais o de qualquer outra natureza –
às vezes manifesta-se com extrema precocidade. Em muitos casos,
amadurece, desenvolve-se e brilha, glorioso, ao sol. Em outros,
murcha, ou por falta de exercício, ou por não receber estímulos e
nem incentivos, ou por outras tantas circunstâncias. Há alguns
casos em que, muito cedo, chega ao auge, beira a excelência, mas...
é abruptamente interrompido, ceifado pela morte.
O
Brasil perdeu, notadamente no século XIX (mas não só nele),
magníficos talentos literários, mormente na poesia, como os casos
de Álvares de Azevedo, Castro Alves e tantos outros, que morreram
jovens, muito jovens, alguns mal completando os vinte e um anos e
outros com um pouco mais. E, mesmo deixando tão cedo o palco da
vida, legaram à posteridade pérolas literárias, obras-primas que
se imortalizaram e se tornaram clássicas.
Fico
imaginando o que não poderiam produzir caso vivessem pelo menos a
média brasileira de vida, atualmente de pouco mais de 72 anos. Ou se
tivessem longevidade ainda maior. É verdade que viver muito não é
garantia de muito produzir. E grande produção nem sempre (ou quase
nunca) implica em alta qualidade. Não, pelo menos, de tudo o que se
produz.
Se
Álvares de Azevedo vivesse, digamos, 80 anos, e se mantivesse a
mesma garra e criatividade, poderia revolucionar a arte da poesia.
Não se pode excluir, porém, a hipótese que talvez não produzisse
nada além e nada melhor do que produziu. O “se”, todavia, nunca
conta. É incógnita. É o que não aconteceu e poderia (ou não)
acontecer.
Há
muito artista talentoso deixando, prematuramente, o palco da vida,
todos os dias, mundo afora. Alguns têm tempo de expor suas obras
que, de tão boas, deixam-nos a sensação de “quero mais”. A
maioria, porém, jamais tem a chance de expor seu talento ao grande
público. Sua produção fica restrita à família, que a guarda como
relíquia do ente querido que parte tão cedo.
O
dia 2 de junho de 2017 marcou mais um aniversário de um desses
talentos precoces que se foram, igualmente, precocemente demais.
Aliás, não se trata de “um”, mas de “uma”, já que me
refiro a uma poetisa, Ana Cristina Cruz César. Quem já leu seus
poemas concorda, sem titubear, que foi um baita talento literário.
Essa mulher sensível e genial, que nasceu em 2 de junho de 1952, foi
tão precoce que, aos seis anos de idade, bem antes de ser
alfabetizada, já ditava poemas à mãe, para que esta os escrevesse.
Nascida
numa família culta, evangélica, a garota teve a oportunidade de
estudar na Inglaterra. Começou a compor ainda menininha e só parou
de fazer isso quando morreu, de forma trágica, em 26 de outubro de
1983, aos 31 anos de idade. Na ocasião, noticiei, chocado, sua morte
no jornal em que então trabalhava. Só omiti a causa da morte, por
causa de uma norma da empresa com a qual, aliás, sempre concordei.
Explico:
Ana Cristina cometeu suicídio, saltando da janela do apartamento dos
pais, no oitavo andar de um edifício residencial localizado na Rua
Toneleros, em Copacabana. E o jornal tinha por norma nunca noticiar
suicídios, por se tratar de terrível drama íntimo das vítimas e
simultaneamente algozes, posto que de si próprias e das respectivas
famílias.
O
que Ana Cristina poderia ter feito, mais do que fez, caso estivesse
viva (estaria completando 66 anos, com muita lenha ainda para
queimar)? Pressinto que muito, embora nem eu nem ninguém possamos
ter certeza disso. Mesmo assim, ela foi importante para a literatura
nacional. Tem seu nome inscrito na história como expoente da chamada
“geração mimeógrafo” , também conhecida como produtora de
“poesia marginal”, da década de 1970.
Não
é de bom tom escrever sobre poetas sem reproduzir pelo menos uma
amostra de sua produção poética. Separei, pois, do meu arquivo,
não apenas um, mas três poemas de Ana Cristina César para
partilhar com vocês. O primeiro é este:
A
ponto de partir
A
ponto de
partir,
já sei
que
nossos olhos
sorriam
para sempre
na
distância.
Parece
pouco?
Chão
de sal grosso, e ouro que se racha.
A
ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância,
lentes
escuríssimas sob os pilotis.
O
segundo poema é este:
Ulysses
E
ele e os outros me veem.
Quem
escolheu este rosto para mim?
Empate
outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete
da minha arte tanto quanto
eu
temo o dele.
Segredos
cansados de sua tirania,
tiranos
que desejam ser destronados.
Segredos,
silenciosos, de pedra,
sentados
nos palácios escuros
de
nossos dois corações:
segredos
cansados de sua tirania,
tiranos
que desejam ser destronados.
O
mesmo quarto e a mesma hora.
Toca
um tango
uma
formiga na pele
da
barriga
rápida
e ruiva.
Uma
sentinela: ilha de terrível sede.
Uma
concha humana.
Finalmente,
trago-lhes mais este poema de Ana Cristina César:
Toda
Mulher
A
coisa que mais o preocupava
naquele
momento
era
estudo de mulher
toda
mulher
dos
quinze aos dezoito
Não
sou mais mulher.
Ela
quer o sujeito.
Coleciona
histórias de amor.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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