Perdas
irreparáveis
Pedro J. Bondaczuk
O historiador John Lukács, em seu livro “O fim do século 20 e o
fim da era moderna” reproduz, antes de iniciar o primeiro capítulo,
estes magníficos versos de Johann Wolfgang Göethe (que traduzidos
perdem um pouco da sonoridade e beleza, mas não da verdade que
encerram):
“Grandes criações neste mundo
foram destruídas por guerra e disputa.
Quem protegeu e preservou
ganhou a mais bela recompensa”.
E qual foi esse ganho? Foi a preservação da memória do povo que
soube proteger seu patrimônio artístico e cultural. Foi a garantia
de que gerações e mais gerações teriam acesso às obras do
pensamento e da sensibilidade produzidas por mentes geniais. Muitas
nações (e ponham muitas nisso!), não tiveram esse privilégio.
Aliás, de inúmeras delas não restam os mínimos vestígios até
mesmo que existiram. Lamentável!
A memória é importante como balizadora de atos. É através dela
que uma geração transmite às demais suas experiências e
descobertas, impedindo que a espécie retroaja à barbárie, num
processo que chamamos de educação (tema de que tratei não faz
muito neste espaço de reflexão diária). Foi para preservá-la,
para impedir que as grandes ideias, ações e exemplos se perdessem
no esquecimento, que se inventou a escrita. Todavia, no correr da
História, inúmeras bibliotecas foram completamente arrasadas, com
perda parcial (raramente) ou total (quase sempre) do seu acervo.
Imaginem o quanto de sabedoria e experiência se perdeu nesses surtos
periódicos de ódio e insânia que acometem certos povos! Por causa
dessas perdas é que a humanidade evoluiu com tamanha lentidão. Um
tesouro de valor incalculável foi reduzido a pó ou a cinzas por
boçais armados, ávidos de sangue e de riquezas para saquear, sob o
comando de tiranos ignorantes, muitos reconhecidamente loucos, cuja
ambição precípua, quando não única, era a de exibir poder.
Conhecido dito popular garante que “a História é a mestra da
vida”. Discordo. Bem que poderia ser, pois se fosse, muitos dos
erros cometidos no passado (remoto ou recente, tanto faz) seriam
evitados no presente. Estou muito mais propenso a crer nos que
afirmam que “a História nunca se repete, a não ser como farsa”.
Não se repete mesmo. Mudam-se não só os personagens e cenários,
como, e principalmente, as circunstâncias e motivações.
Na realidade, a vida é que é (ou deveria ser) a mestra (quase nunca
ouvida) da História. Os mesmos erros do passado remotíssimo, dos
primórdios da civilização, são cometidos hoje em dia, com
consequências agravadas pela multiplicação da espécie. Passou-se
de alguns milhares de indivíduos de então para os 7,6 bilhões de
pessoas atuais. Não há, pois, como deixar de dar razão a Aldous
Huxley quando afirma: “Talvez a maior lição da História seja que
ninguém aprendeu as lições da História”.
Somos, por causa desses surtos periódicos de violência e insânia
uma espécie de arqueólogos a escavarmos, continuamente, as ruínas
do nosso passado, sepultadas sob toneladas de poeira do tempo. Alguns
buscam lembranças benignas e deliciosas, que os consolem das agruras
do presente. Outros, imprudentes e tolos, revivem fracassos e
frustrações, que teimam em remoer anos a fio, quando a atitude
prudente seria deixá-los intocados, enterrados para sempre. Outros,
ainda, fantasiam e se convencem que foram reais episódios que só
existem em suas imaginações.
Apesar do avanço de todas as ciências auxiliares, das sucessivas
descobertas dos arqueólogos, da decifração de escritas exóticas
(como os hieróglifos egípcios), a verdadeira “História” da
humanidade jamais pôde ser contada. Isso que conhecemos como tal,
talvez não represente nem mesmo 2% do que realmente aconteceu.
Raciocinem: os historiadores mais notáveis foram os gregos Heródoto,
Hesíodo, Plutarco e Políbio; os romanos Suetônio, Tito Lívio e
Tácito o judeu Flávio Josefo. Viviam num tempo em que viajar da
cidade em que moravam para outra, vizinha, que distasse a apenas 50
quilômetros, já era memorável aventura. Imaginem ir para outros
países ou continentes! Não havia meios de comunicação (óbvio)
como telefone, rádio, televisão, internet etc. Esses historiadores
tomavam ciência dos fatos (quando tomavam) por “ouvirem dizer”.
Suas fontes de consulta mais confiável eram bibliotecas, com suas
crônicas e textos literários dando conta do dia a dia da população
de vários povos. Todavia... a maioria delas foi destruída e
saqueada e nada restou.
Ademais, muitos dos escritos dos principais historiadores igualmente
se perderam, e pelo mesmo motivo. Por causa de guerras, saques e
destruições. Portanto, isso que conhecemos como “História”...
Boa parte não passa de especulação e outro tanto, de mera ficção.
Reitero que as guerras, além de provocarem estúpidas e
desnecessárias eliminações de milhões de vidas, de arruinarem
cidades a ponto de não restarem pedras sobre pedras de muitas delas,
de destruírem bens materiais, sempre foram causas de imensos e
irrecuperáveis atrasos no processo de civilização. A humanidade
seria, hoje, muito melhor caso não houvesse guerras ou seu número
fosse ínfimo.
Lukács exemplifica o que afirmei: “Houve revoluções após 1815;
no entanto a história do século 19 foi marcada pela ausência de
guerras mundiais, o que determinou sua prosperidade e seu progresso
excepcionais”. Há quem argumente que o século 20 foi
incrivelmente de maior progresso e, no entanto... Espera lá, essa é
uma tese que não se sustenta na base. Houve, sim, grande progresso
científico, tecnológico, material e até espiritual nos cem anos
anteriores, mas esse poderia ser infinitamente maior caso não
houvesse as duas guerras mundiais. Imaginem as riquezas que foram
desperdiçadas! Imaginem os cérebros brilhantes jogados fora no
holocausto (cremados nos fornos crematórios dessas autênticas
“fábricas da morte” que foram os campos de concentração
nazistas) e mesmo nos campos de batalha! Imaginem quanto quadro
deixou de ser pintado, quanta sinfonia deixou de ser composta, quanto
livro deixou de ser escrito, quanto poema deixou de nascer, quanta
boa energia não foi desperdiçada em uma causa tão ruim! Voltarei,
oportunamente, ao assunto.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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