Na
própria carne
Pedro J. Bondaczuk
O sofrimento – físico, mental, moral, psicológico, afetivo ou
seja lá de qual natureza for – é o que há de pior para qualquer
ser vivo e, lógica e especificamente, para o homem. Infelizmente, no
entanto, é o que mais existe mundo afora. Todos, rigorosamente
todos, passamos, em algum momento de nossas vidas, por essas
dolorosas experiências. O que varia é a constância, e não somente
ela, mas a causa, a duração, a natureza e a intensidade dessa coisa
ruim que, não raro, após cessar, produz traumas muitas vezes
incuráveis. Ou seja, mais sofrimentos, posto que de natureza
diversa.
Não há uma única pessoa considerada “normal” (embora o
conceito de normalidade seja muito elástico, vago e indefinido) que
não busque fugir de todas as formas dos sofrimentos. Certo? Creio
que isso chega a ser até redundante, de tão óbvio que é.
Aquele chato, que põe reparo em tudo e dá pitaco em qualquer
assunto só para contrariar e contradizer, pode afirmar (e certamente
afirmará): “Há os que, não somente não fogem do sofrimento,
como até se deliciam com ele e o procuram”. É verdade. A
referência, aqui, claro, é aos masoquistas. Estes, todavia, não
são normais (no senso comum de normalidade). Padecem de um desvio,
de uma tara, de ostensiva anormalidade, que contraria, até, um dos
instintos básicos dos seres vivos: o de autopreservação.
O normal é que as pessoas evitem o sofrimento. E quando não é
possível evitar, busquem diminuir e curar logo as causas para
eliminá-lo. A única função da medicina, por exemplo, é a de
curar doenças e, dessa forma, acabar com os sofrimentos orgânicos.
A indústria farmacêutica desenvolveu uma série de analgésicos,
que muitas vezes, se usados inadequadamente, atacam os sintomas sem
atacar as causas, especificamente para livrar as pessoas da dor. Ou
seja, do sofrimento. Mascaram, dessa forma, as doenças (mas não
quero e nem vou generalizar).
Para intervenções mais radicais, as cirúrgicas, foram
desenvolvidos os anestésicos, tremendo avanço para cirurgias mais
humanas e seguras, para que não sejam tão dolorosas (e perigosas
pois podem levar os pacientes até ao estado de choque) como eram até
antes da sua invenção.
Em resumo, nosso empenho cotidiano, individual ou coletivo, é no
sentido de evitar o sofrimento, de acabar com ele depois de instalado
ou de, quando isso não for possível, diminuí-lo e torná-lo
suportável. As pessoas mais sensíveis sofrem não apenas com seus
problemas individuais, mas com os coletivos também. E os idealistas
veem o mundo como um lugar de sofrimento, um “vale de lágrimas”,
e por isso se empenham na utopia de construir realidades ideais, nas
quais ninguém sofra, por nenhum motivo. Claro que é impossível.
Daí o termo “utopia” para suas projeções.
Relendo, porém, por estes dias, um livro de Anatole France
(pseudônimo do escritor francês Anatole François Thibault,
ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1921, pelo conjunto de sua
obra), se não me engano o romance “O manequim de vime”, li,
surpreso, a seguinte declaração que anotei: “O sofrimento! Que
divino desconhecido! Devemos-lhe tudo o que é bom em nós, tudo o
que dá valor à vida; devemos-lhe a compaixão, devemos-lhe a
coragem, devemos-lhe todas as virtudes. A terra não passa de um grão
de areia no deserto infinito dos mundos. Mas se o sofrimento se
limita à terra, ela é maior que o resto do universo”.
Fiquei pasmo! Nunca antes havia lido algo que me soasse a uma
apologia do sofrimento, como esse trecho me parece ser. Quando se lê
coisas desse tipo, notadamente em obras de ficção, é preciso muito
cuidado. É necessário, antes de tudo, contextualizar a declaração.
Muitas vezes um escritor coloca na boca de um personagem conceitos
diametralmente opostos aos seus. Portanto, fico sem saber se, no
caso, esse era o verdadeiro pensamento de Anatole France ou não.
Provavelmente não era. E justo ele, que era um sujeito realista, com
ideais de esquerda, cético e não dado a misticismos (os místicos é
que pregam a purificação da alma mediante penitências e
autoflagelações, ou seja, sofrimento físico)!
Sem nenhuma certeza, fico com a desconfiança de que essa era a
opinião do “personagem” e não do seu inventor. Não posso
garantir nem uma coisa e nem outra. Eu, se fosse o autor da
afirmação, de alguma forma, esclareceria, na sequência, que não
penso dessa forma. Mas... cada escritor tem sua maneira de proceder.
É verdade que o sofrimento enseja o surgimento de preciosas
virtudes, como a compaixão e a coragem, como ressalta o personagem
de Anatole France. . Mas, da mesma forma que analisei os que “gostam”
de sofrer, ou seja os masoquistas, devo citar o outro extremo, o dos
que entram em êxtase, em delírio, em estado de supremo gozo quando
infligem sofrimentos aos outros, no caso, os sádicos.
Estes têm compaixão? Ora, ora, ora. Para quem tem essa tara, quanto
mais os outros sofrem, mais se deliciam. E sequer importa para eles
se esse sofrimento é causado por eles, ou por outros ou por qualquer
causa alheia à ação humana.
Quanto à coragem... Nem todos (e nem sempre) encaram o sofrimento de
forma corajosa e confiante. Há os que são mais sensíveis. Há os
que se acovardam e findam por sofrer com a simples ideia da
possibilidade de passarem por um ou por vários sofrimentos. Conheço
inúmeras pessoas assim e, provavelmente, o leitor também conhece.
Anatole France, portanto, (ou seu personagem, como convencionei que
iria considerar), declarou uma tremenda bobagem, que serve mais para
justificação da tara de um renitente masoquista, do que para
expressar a ideia de uma pessoa normal (reitero, no senso comum de
normalidade). Da minha parte, detesto sofrimentos (não importa de
que tipo e intensidade) e, sempre que está ao meu alcance, procuro
minorar, e jamais infligi-lo aos outros. E você, paciente leitor?
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