Tuesday, February 16, 2016

Renascimento excluiu as mulheres


Pedro J. Bondaczuk

O chamado Renascimento, que pode, sem exagero algum, ser considerado como época de “descoberta do mundo e do homem”, conforme caracterização feita pelo historiador suíço Jacob Burkhardt, foi decisivo para o desenvolvimento da civilização, tal como a conhecemos hoje. Óbvio que isso que aí está não é perfeito, com todo o avanço ocorrido nos últimos 500 anos. Porém, caso a humanidade permanecesse mergulhada na ignorância e no obscurantismo, como ocorreu pelos longuíssimos mil anos da Idade Média, as coisas seriam muitíssimo piores em todos os aspectos. Não discorrerei sobre esse despertar artístico, cultural e comportamental da humanidade, que implicou em mudanças em todos os setores de atividade, porquanto há milhares e milhares de livros a propósito. Não tenho, portanto, nada de novo a informar a respeito.

Lembro, entretanto, que o processo de profundas mudanças não se deu da noite para o dia, num piscar de olhos e nem abrangeu já não digo o mundo todo, mas os principais países da Europa. Foi lento, gradual, levou mais de um século para se consolidar. Seu início foi restrito à região italiana da Toscana, mais especificamente às cidades de Florença e Siena. Daí, irradiou-se para a França, Alemanha, Inglaterra etc.etc.etc. Essa redescoberta e revalorização das referências culturais da Antiguidade Clássica ficou mais nítida nas artes em geral, especificamente na Literatura e, igualmente, na Filosofia, embora influenciasse, reitero, todas as atividades, como política, economia etc. e até mesmo a religião.

Era de se supor que esse período, que pode e deve ser considerado como culturalmente “revolucionário”, ensejasse a existência de um número razoável de filósofas. Não foi, todavia, o que aconteceu. As mulheres, pode-se dizer, foram excluídas do Renascimento. Continuaram rigorosamente restringidas ao seu secular papel, encaradas como intelectualmente inferiores e, por isso, na concepção vigente, carentes de permanente tutela masculina. Esse período, demarcado pelos historiadores como tendo se iniciado no século XV e terminado no XVIII, é classificado, para efeito de estudo, de Idade Moderna. Como em etapas anteriores da História, teve, sim, dezenas, centenas, milhares e provavelmente muito mais de filósofas, Porém, raríssimas foram as que tiveram o privilégio de terem suas obras salvas da destruição, mesmo que fosse um ou outro fragmento delas. E a imensa maioria foi completamente esquecida, a ponto de não haver sequer registro de seus nomes.

A enciclopédia eletrônica Wikipédia – que adotei como fonte para esta série de comentários – traz breves e escassas referências sobre oito mulheres que se dedicaram, de alguma forma, à Filosofia messe período. A primeira delas, a exemplo das filósofas medievais, esteve diretamente vinculada à religião. É Teresa de Jesus, ou Santa Teresa de Ávila, que viveu entre 1515 e 1582. A partir de 1562, essa monja mística iniciou a tarefa de fundação de vários monastérios das carmelitas descalças na Espanha. Dela restaram alguns livros, dos quais quatro são os mais conhecidos: “Caminho da perfeição”, “Livro de sua vida” (autobiografia), “Castelo Interior” e “As moradas”.

Outra mulher que se dedicou à Filosofia foi a francesa Louise Labé, que viveu entre 1524 e 1566. Foi uma pensadora erudita, escritora, filósofa e música. Dela, conhecem-se duas obras, sendo uma poética, “Sonetos” e outra filosófica, “Debate entre a loucura e o amor”. Na dedicatória deste último livro, Louise redigiu uma espécie de manifesto das reivindicações femininas, entre as quais o direito de acesso ao conhecimento científico e a tantos outros saberes. Como se vê, o “Renascimento” não havia chegado, ainda, às mulheres, que se mantinham na mesmíssima situação que sempre tiveram desde a remotíssima Antiguidade perdida no tempo.

Da espanhola Oliva Sabuco desconhece-se praticamente tudo: quando nasceu, como viveu e quando morreu. E olhem que ela legou relevantes idéias à sociedade de seu país, quer como filósofa, quer como médica. Foi a pioneira no ramo da Medicina Psicossomática. Tinha uma visão holística do ser humano. Para ela, era necessária a união entre filosofia e medicina, para a promoção da sanidade completa das pessoas, envolvendo corpo, alma e mente. Levantou a tese de que influências externas à Terra afetavam a saúde humana (como os raios cósmicos e raios ultravioleta e infravermelhos etc.etc.etc.). Oliva Sabuco publicou sua tese em 1587, em sete alentados tratados, cujas idéias são atuais, inclusive, nos dias de hoje.

A inglesa Mary Astell, que nasceu em 12 de novembro de 1666 e morreu em 11 de maio de 1731, unificou suas convicções filosóficas e religiosas numa visão essencialmente feminista. Deu importante contribuição nas áreas pedagógica e moral da sua época. Defendeu com coragem e vigor a igualdade de oportunidades educacionais para homens e mulheres, sendo, não raro, ridicularizada por isso. São dela os livros “A serious proposal to the ladies for the advancement of their true and greater interests” e “By a lover of her sex”. Passou para a história com o título de “a primeira feminista inglesa”.

A italiana Maria Gaetana Agnesi, que viveu entre 1718 e 1799, fez cair em ridículo a preconceituosa tese de que a matemática não é assunto para mulheres. Alias, muito pelo contrário. Essa fundamental disciplina deve muito ao raciocínio feminino. Desde a Grécia antiga, elas foram pioneiras no que se refere a cálculos. Basta lembrar que Pitágoras teve, como grande mestra, a genial Temistocléia. Maria Gaetana, além de inovadora na ciência dos números, foi, também, lingüista e filósofa. Mas foi na matemática que se consagrou como autora do primeiro livro que tratou, simultaneamente, do cálculo diferencial e integral. Escreveu “Instituzioni Analitiche”, o mais profundo, claro e exato compêndio de análise algébrica e infinitesimal, traduzido para o inglês e o francês. Escreveu, em latim, o livro “Propositiones philosophicae”, publicado em Milão em 1738.

Mary Wollstonecraft, que viveu entre 1739 e 1797, foi outra famosa feminista inglesa. O curioso é que escreveu seu primeiro livro, “Pensamentos sobre a educação das filhas”, apenas em 1787, dez anos antes da sua morte. Nele, percebe-se nítida influência dos filósofos John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Em 1790, publicou “Reivindicação dos Direitos dos Homens” e, dois anos depois, em 1792, sua obra mais importante, o tratado político-filosófico “A Reivindicação dos Direitos das Mulheres”.

A francesa Marie Gouze, que escreveu seus livros com o pseudônimo de Olympe de Gouges, foi mulher das mais ativas e corajosas, que pagou duro preço por sua ousadia. Foi presa, por exemplo, por questionar a escravidão dos negros, que era tida como coisa “muito normal” na sua época. Essa intelectual, que viveu entre 1748 e 1793, foi uma escritora e revolucionária prolífica. De sua obra restaram mais de quatro mil páginas entre peças de teatro, panfletos, novelas, sátiras, utopias e... Filosofia. Assumiu posições firmes em relação aos direitos da mulher, defendendo o divórcio, a proteção à maternidade, o acesso livre à educação e a liberdade religiosa. Olympe de Gouges, ou Marie Gouza, foi mártir na luta pelos direitos dos humilhados e ofendidos, pagando sua ousadia com a condenação à morte, na guilhotina, em 1793.  Isso a despeito do tal Renascimento.

Finalmente, a última filósofa da Idade Moderna, das relacionadas pela Wikipédia, é a inglesa Harriet Taylor, que viveu ente 1807 e 1858. Como a maior parte das suas antecessoras, defendeu, também, o direito das mulheres. Manteve estreita relação com o filósofo John Stuart Mill, em parceria do qual produziu sua obra mais conhecida, “The subjection of womem”. Não é incrível que, com as profundas mudanças promovidas em todos os campos de atividade pelo Renascimento, a situação das mulheres tenha permanecido a mesma por milênios, sem a menor justificativa para tal, a não ser um irremovível preconceito de gênero?! O que você acha, esclarecido leitor?


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: