Renascimento excluiu as
mulheres
Pedro
J. Bondaczuk
O chamado Renascimento,
que pode, sem exagero algum, ser considerado como época de “descoberta do mundo
e do homem”, conforme caracterização feita pelo historiador suíço Jacob
Burkhardt, foi decisivo para o desenvolvimento da civilização, tal como a
conhecemos hoje. Óbvio que isso que aí está não é perfeito, com todo o avanço
ocorrido nos últimos 500 anos. Porém, caso a humanidade permanecesse mergulhada
na ignorância e no obscurantismo, como ocorreu pelos longuíssimos mil anos da
Idade Média, as coisas seriam muitíssimo piores em todos os aspectos. Não
discorrerei sobre esse despertar artístico, cultural e comportamental da
humanidade, que implicou em mudanças em todos os setores de atividade, porquanto
há milhares e milhares de livros a propósito. Não tenho, portanto, nada de novo
a informar a respeito.
Lembro, entretanto, que
o processo de profundas mudanças não se deu da noite para o dia, num piscar de
olhos e nem abrangeu já não digo o mundo todo, mas os principais países da
Europa. Foi lento, gradual, levou mais de um século para se consolidar. Seu
início foi restrito à região italiana da Toscana, mais especificamente às
cidades de Florença e Siena. Daí, irradiou-se para a França, Alemanha, Inglaterra
etc.etc.etc. Essa redescoberta e revalorização das referências culturais da
Antiguidade Clássica ficou mais nítida nas artes em geral, especificamente na
Literatura e, igualmente, na Filosofia, embora influenciasse, reitero, todas as
atividades, como política, economia etc. e até mesmo a religião.
Era de se supor que
esse período, que pode e deve ser considerado como culturalmente
“revolucionário”, ensejasse a existência de um número razoável de filósofas.
Não foi, todavia, o que aconteceu. As mulheres, pode-se dizer, foram excluídas
do Renascimento. Continuaram rigorosamente restringidas ao seu secular papel,
encaradas como intelectualmente inferiores e, por isso, na concepção vigente,
carentes de permanente tutela masculina. Esse período, demarcado pelos
historiadores como tendo se iniciado no século XV e terminado no XVIII, é
classificado, para efeito de estudo, de Idade Moderna. Como em etapas
anteriores da História, teve, sim, dezenas, centenas, milhares e provavelmente
muito mais de filósofas, Porém, raríssimas foram as que tiveram o privilégio de
terem suas obras salvas da destruição, mesmo que fosse um ou outro fragmento
delas. E a imensa maioria foi completamente esquecida, a ponto de não haver
sequer registro de seus nomes.
A enciclopédia eletrônica
Wikipédia – que adotei como fonte para esta série de comentários – traz breves
e escassas referências sobre oito mulheres que se dedicaram, de alguma forma, à
Filosofia messe período. A primeira delas, a exemplo das filósofas medievais,
esteve diretamente vinculada à religião. É Teresa de Jesus, ou Santa Teresa de
Ávila, que viveu entre 1515 e 1582. A partir de 1562, essa monja mística
iniciou a tarefa de fundação de vários monastérios das carmelitas descalças na
Espanha. Dela restaram alguns livros, dos quais quatro são os mais conhecidos:
“Caminho da perfeição”, “Livro de sua vida” (autobiografia), “Castelo Interior”
e “As moradas”.
Outra mulher que se
dedicou à Filosofia foi a francesa Louise Labé, que viveu entre 1524 e 1566.
Foi uma pensadora erudita, escritora, filósofa e música. Dela, conhecem-se duas
obras, sendo uma poética, “Sonetos” e outra filosófica, “Debate entre a loucura
e o amor”. Na dedicatória deste último livro, Louise redigiu uma espécie de
manifesto das reivindicações femininas, entre as quais o direito de acesso ao
conhecimento científico e a tantos outros saberes. Como se vê, o “Renascimento”
não havia chegado, ainda, às mulheres, que se mantinham na mesmíssima situação
que sempre tiveram desde a remotíssima Antiguidade perdida no tempo.
Da espanhola Oliva
Sabuco desconhece-se praticamente tudo: quando nasceu, como viveu e quando
morreu. E olhem que ela legou relevantes idéias à sociedade de seu país, quer
como filósofa, quer como médica. Foi a pioneira no ramo da Medicina Psicossomática.
Tinha uma visão holística do ser humano. Para ela, era necessária a união entre
filosofia e medicina, para a promoção da sanidade completa das pessoas,
envolvendo corpo, alma e mente. Levantou a tese de que influências externas à
Terra afetavam a saúde humana (como os raios cósmicos e raios ultravioleta e
infravermelhos etc.etc.etc.). Oliva Sabuco publicou sua tese em 1587, em sete
alentados tratados, cujas idéias são atuais, inclusive, nos dias de hoje.
A inglesa Mary Astell,
que nasceu em 12 de novembro de 1666 e morreu em 11 de maio de 1731, unificou
suas convicções filosóficas e religiosas numa visão essencialmente feminista.
Deu importante contribuição nas áreas pedagógica e moral da sua época. Defendeu
com coragem e vigor a igualdade de oportunidades educacionais para homens e
mulheres, sendo, não raro, ridicularizada por isso. São dela os livros “A
serious proposal to the ladies for the advancement of their true and greater
interests” e “By a lover of her sex”. Passou para a história com o título de “a
primeira feminista inglesa”.
A italiana Maria
Gaetana Agnesi, que viveu entre 1718 e 1799, fez cair em ridículo a
preconceituosa tese de que a matemática não é assunto para mulheres. Alias,
muito pelo contrário. Essa fundamental disciplina deve muito ao raciocínio
feminino. Desde a Grécia antiga, elas foram pioneiras no que se refere a
cálculos. Basta lembrar que Pitágoras teve, como grande mestra, a genial
Temistocléia. Maria Gaetana, além de inovadora na ciência dos números, foi,
também, lingüista e filósofa. Mas foi na matemática que se consagrou como
autora do primeiro livro que tratou, simultaneamente, do cálculo diferencial e
integral. Escreveu “Instituzioni Analitiche”, o mais profundo, claro e exato
compêndio de análise algébrica e infinitesimal, traduzido para o inglês e o
francês. Escreveu, em latim, o livro “Propositiones philosophicae”, publicado
em Milão em 1738.
Mary Wollstonecraft,
que viveu entre 1739 e 1797, foi outra famosa feminista inglesa. O curioso é
que escreveu seu primeiro livro, “Pensamentos sobre a educação das filhas”,
apenas em 1787, dez anos antes da sua morte. Nele, percebe-se nítida influência
dos filósofos John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Em 1790, publicou
“Reivindicação dos Direitos dos Homens” e, dois anos depois, em 1792, sua obra
mais importante, o tratado político-filosófico “A Reivindicação dos Direitos
das Mulheres”.
A francesa Marie Gouze,
que escreveu seus livros com o pseudônimo de Olympe de Gouges, foi mulher das
mais ativas e corajosas, que pagou duro preço por sua ousadia. Foi presa, por
exemplo, por questionar a escravidão dos negros, que era tida como coisa “muito
normal” na sua época. Essa intelectual, que viveu entre 1748 e 1793, foi uma
escritora e revolucionária prolífica. De sua obra restaram mais de quatro mil
páginas entre peças de teatro, panfletos, novelas, sátiras, utopias e...
Filosofia. Assumiu posições firmes em relação aos direitos da mulher,
defendendo o divórcio, a proteção à maternidade, o acesso livre à educação e a
liberdade religiosa. Olympe de Gouges, ou Marie Gouza, foi mártir na luta pelos
direitos dos humilhados e ofendidos, pagando sua ousadia com a condenação à
morte, na guilhotina, em 1793. Isso a
despeito do tal Renascimento.
Finalmente, a última
filósofa da Idade Moderna, das relacionadas pela Wikipédia, é a inglesa Harriet
Taylor, que viveu ente 1807 e 1858. Como a maior parte das suas antecessoras,
defendeu, também, o direito das mulheres. Manteve estreita relação com o
filósofo John Stuart Mill, em parceria do qual produziu sua obra mais
conhecida, “The subjection of womem”. Não é incrível que, com as profundas
mudanças promovidas em todos os campos de atividade pelo Renascimento, a
situação das mulheres tenha permanecido a mesma por milênios, sem a menor
justificativa para tal, a não ser um irremovível preconceito de gênero?! O que
você acha, esclarecido leitor?
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