Quem nasceu primeiro?
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor norueguês
Jostein Gaarder afirmou, no segundo capítulo de sua obra-prima, “O mundo de
Sofia”, que a religião precedeu a Filosofia como tentativa dos nossos
remotíssimos ancestrais de darem uma explicação que consideravam lógica sobre o
que eram, de onde vinham, onde estavam e, para onde iam. Escreveu: “Essas
explicações religiosas foram transmitidas de geração em geração através dos
mitos”. A referida afirmação comporta, porém, contestação. Gaarder relativizou
a questão, ao escrever: “Por filosofia queremos dizer uma maneira completamente
nova de pensar que surgiu na Grécia aproximadamente em 600 a.C.”. Ou seja,
referiu-se, especificamente, ao suposto princípio dessa que é a “mãe de todas
as ciências”.
Se atentarmos, porém,
para a proto-história, essa relação se inverte. Ou seja, a religião surgiu para
explicar o que um princípio filosófico básico anterior, ou seja, o da dúvida e
do questionamento, lançou previamente no ar. Portanto, segundo entendo, a
Filosofia, posto que primaríssima, precedeu os mitos. É uma questão comparável à
famosa e tão popular indagação: “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”.
Você, certamente, paciente leitor, deve estar perguntando aos seus botões: o
que os mitos têm a ver com religião? Têm tudo! E não sou eu que afirmo, são
doutos, reputados e experientes pensadores.
O ilustre jurista Paulo
Queiroz, que escreveu profundos ensaios a respeito, afirma: “Religião é
mitologia com outro nome”. Estabelece, porém, importante distinção. Escreve:
“Todo discurso religioso é um discurso mitológico. Mas... nem todo discurso
mitológico é um discurso religioso”. Há mitos que nada têm a ver com deuses e
seu imaginário relacionamento com os humanos. Pitoresca (e esclarecedora) é a
definição dada pelo poeta e classissista (especialista nos clássicos)
norte-americano, Cedric Whitman, expert na obra de Homero. Em carta escrita
para Edward Tripp, em 1969, declarou: “Mitologia é aquilo no que os adultos
acreditam. Folclore é aquilo que eles contam para seus filhos. E religião é
ambos”.
Jostein Gaarder
escreveu, em “O mundo de Sofia”: “(...) Em todo o mundo, ao longo de milênios,
uma profusão de mitos floresceu como resposta às questões filosóficas. Os
filósofos gregos tentaram mostrar às pessoas que essas respostas não eram
confiáveis (...)”. E o escritor norueguês prosseguiu em seu raciocínio: “(...)
Para compreender o pensamento dos primeiros filósofos, nós devemos compreender
o que seria uma visão mitológica do mundo. Não é preciso ir tão longe, até a
Grécia para isso. Vamos tomar algumas concepções mitológicas da Escandinávia
como exemplo (...)”.
A essa altura, Gaarder
discorre sobre o mito de Tor e seu martelo. Explica como os vikings entendiam o
mundo e seus fenômenos. Cita outros tantos mitos referentes sobre Odin, Frey e
Freya, Hod e Balder, com suas peripécias. E escreve: “(...) Explicações
mitológicas semelhantes (às escandinavas) floresceram por todo o mundo antes
que os filósofos começassem a questioná-las. Pois os gregos também tinham sua
visão mitológica do mundo antes do surgimento do primeiro filósofo. Durante
séculos, geração após geração, eles contavam histórias dos deuses. Na Grécia,
os deuses se chamavam Zeus ou Apolo, Hera ou Atena, Dionísio ou Asclépio,
Héracles ou Hefesto, apenas para citar alguns (...)”.
Para refrescar-lhes a
memória, lembro que essas lições sobre a origem da Filosofia eram transmitidas,
no livro de Jostein Gaarder, a uma menina de catorze anos (às vésperas de seu
décimo quinto aniversário) chamada Sofia Amudsen, que vivia na Noruega em 1990,
na companhia da mãe, do seu gato Sherekan, de seu peixinho dourado e de uma
tartaruga. O pai da adolescente, capitão de um petroleiro, nem aparece no
livro, além dessa única referência feita a ele.
Sofia torna-se aluna do
filósofo Albert Knox, de cinqüenta anos, que no começo do enredo aparece apenas
pelas fichas, com as indagações filosóficas para a adolescente, sendo,
portanto, anônimo. Na sequência da história, no entanto, revela cada vez mais
detalhes a seu respeito. Atentem, porém, ao fato de que esses dois personagens
vão surpreender os leitores mais adiante, na narrativa. Todavia, pelo menos por
enquanto, não revelarei em que aspecto isso vai acontecer. Fica no ar a
pergunta: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Ou, melhor, quem surgiu
antes, a religião ou a filosofia?
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