Tuesday, February 09, 2016

Quem nasceu primeiro?


Pedro J. Bondaczuk

O escritor norueguês Jostein Gaarder afirmou, no segundo capítulo de sua obra-prima, “O mundo de Sofia”, que a religião precedeu a Filosofia como tentativa dos nossos remotíssimos ancestrais de darem uma explicação que consideravam lógica sobre o que eram, de onde vinham, onde estavam e, para onde iam. Escreveu: “Essas explicações religiosas foram transmitidas de geração em geração através dos mitos”. A referida afirmação comporta, porém, contestação. Gaarder relativizou a questão, ao escrever: “Por filosofia queremos dizer uma maneira completamente nova de pensar que surgiu na Grécia aproximadamente em 600 a.C.”. Ou seja, referiu-se, especificamente, ao suposto princípio dessa que é a “mãe de todas as ciências”.

Se atentarmos, porém, para a proto-história, essa relação se inverte. Ou seja, a religião surgiu para explicar o que um princípio filosófico básico anterior, ou seja, o da dúvida e do questionamento, lançou previamente no ar. Portanto, segundo entendo, a Filosofia, posto que primaríssima, precedeu os mitos. É uma questão comparável à famosa e tão popular indagação: “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”. Você, certamente, paciente leitor, deve estar perguntando aos seus botões: o que os mitos têm a ver com religião? Têm tudo! E não sou eu que afirmo, são doutos, reputados e experientes pensadores.

O ilustre jurista Paulo Queiroz, que escreveu profundos ensaios a respeito, afirma: “Religião é mitologia com outro nome”. Estabelece, porém, importante distinção. Escreve: “Todo discurso religioso é um discurso mitológico. Mas... nem todo discurso mitológico é um discurso religioso”. Há mitos que nada têm a ver com deuses e seu imaginário relacionamento com os humanos. Pitoresca (e esclarecedora) é a definição dada pelo poeta e classissista (especialista nos clássicos) norte-americano, Cedric Whitman, expert na obra de Homero. Em carta escrita para Edward Tripp, em 1969, declarou: “Mitologia é aquilo no que os adultos acreditam. Folclore é aquilo que eles contam para seus filhos. E religião é ambos”.

Jostein Gaarder escreveu, em “O mundo de Sofia”: “(...) Em todo o mundo, ao longo de milênios, uma profusão de mitos floresceu como resposta às questões filosóficas. Os filósofos gregos tentaram mostrar às pessoas que essas respostas não eram confiáveis (...)”. E o escritor norueguês prosseguiu em seu raciocínio: “(...) Para compreender o pensamento dos primeiros filósofos, nós devemos compreender o que seria uma visão mitológica do mundo. Não é preciso ir tão longe, até a Grécia para isso. Vamos tomar algumas concepções mitológicas da Escandinávia como exemplo (...)”.

A essa altura, Gaarder discorre sobre o mito de Tor e seu martelo. Explica como os vikings entendiam o mundo e seus fenômenos. Cita outros tantos mitos referentes sobre Odin, Frey e Freya, Hod e Balder, com suas peripécias. E escreve: “(...) Explicações mitológicas semelhantes (às escandinavas) floresceram por todo o mundo antes que os filósofos começassem a questioná-las. Pois os gregos também tinham sua visão mitológica do mundo antes do surgimento do primeiro filósofo. Durante séculos, geração após geração, eles contavam histórias dos deuses. Na Grécia, os deuses se chamavam Zeus ou Apolo, Hera ou Atena, Dionísio ou Asclépio, Héracles ou Hefesto, apenas para citar alguns (...)”.

Para refrescar-lhes a memória, lembro que essas lições sobre a origem da Filosofia eram transmitidas, no livro de Jostein Gaarder, a uma menina de catorze anos (às vésperas de seu décimo quinto aniversário) chamada Sofia Amudsen, que vivia na Noruega em 1990, na companhia da mãe, do seu gato Sherekan, de seu peixinho dourado e de uma tartaruga. O pai da adolescente, capitão de um petroleiro, nem aparece no livro, além dessa única referência feita a ele.

Sofia torna-se aluna do filósofo Albert Knox, de cinqüenta anos, que no começo do enredo aparece apenas pelas fichas, com as indagações filosóficas para a adolescente, sendo, portanto, anônimo. Na sequência da história, no entanto, revela cada vez mais detalhes a seu respeito. Atentem, porém, ao fato de que esses dois personagens vão surpreender os leitores mais adiante, na narrativa. Todavia, pelo menos por enquanto, não revelarei em que aspecto isso vai acontecer. Fica no ar a pergunta: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Ou, melhor, quem surgiu antes, a religião ou a filosofia?


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