Monday, February 29, 2016

Formigamento de prazer


Pedro J. Bondaczuk

O escritor português, Eugênio Andrade, escreveu, em “Rosto precário”, que “as palavras são nossa condenação”. Bem, depende de quais usamos e em que circunstâncias. E a quem destinamos, óbvio. Elas podem, também, todavia, ser nossa redenção, por que não? Eugênio justifica sua declaração: “Com palavras se ama, com palavras se odeia. E, suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras”. Todavia, como nos comunicaríamos se elas não existissem? Por gestos? Pelo olhar? Pelo toque? Ora, ora, ora, se com palavras há tantos equívocos e más interpretações, imaginem sem elas! Seria o caos. Não haveria nenhum tipo de relacionamento entre as pessoas, nem mesmo o instintivo, ditado pela natureza, entre o homem e a mulher.

Da minha parte, “amo” as palavras, mesmo as que expressem sentimentos e atitudes negativas. Elas são a matéria-prima do que faço, a forma de expressar meus sonhos, pensamentos e sentimentos, mesmo correndo o risco de equívocos se as utilizar de maneira inadequada. Responda-me, caríssimo leitor, você já estremeceu ao ler um texto bem escrito que o tenha tocado profundamente e emocionado às lágrimas, por sua beleza e verdade? Eu sim. E Fernando Pessoa também. É o que ele dá a entender neste trecho do seu “Livro do Desassossego”, escrito sob o heterônimo de Bernardo Soares: “Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho –  transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo”.

Cabe, aqui, uma explicação para situar o leitor a propósito dos autores citados por Pessoa. O Fialho, a que ele se refere, é seu conterrâneo José Valentim Fialho de Almeida, jornalista e escritor pós-romântico, muito popular em fins do século XIX, mas que andou por anos e anos esquecido, sobretudo depois que foi para Cuba, onde fixou residência e onde morreu em 4 de março de 1911. Recentemente, sua memória e sua obra foram resgatadas por Manuel Fonseca, Que publicou uma antologia de seus melhores contos e mais expressivas crônicas. De seus nove livros, destaco “O país das uvas”, datado de 1893, que tenho agora em mãos. Oportunamente, tratarei desse escritor cujas páginas fizeram Fernando Pessoa “estremecer”.

O outro autor citado no “Livro do Desassossego” dispensa comentários. François-Rene Auguste de Chateaubriand é uma espécie de clássico da literatura francesa. É citado, inclusive, em um texto de Victor Hugo, pela “força de sua imaginação e brilho de seu estilo, unindo eloqüência e colorido nas descrições que faz” em seus tantos textos. Tomei contato pela primeira vez com sua escrita no livro de francês da segunda série ginasial, no tempo em que esse idioma integrava o currículo do antigo ginásio. Encantei-me com ele, mas não tanto quanto Pessoa.

O genial “poli-escritor” dos heterônimos acrescentou, no texto citado: “Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trêmulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso”.

Meu sentimento, todavia, é, rigorosamente, como o expresso por Pablo Neruda, neste monumental poema, publicado em seu livro autobiográfico “Confesso que vivi”:

“Sim senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam.
Prosterno-me diante delas.
Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as.
Amo tanto as palavras.
As inesperadas.
As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem.
Vocábulos amados.
Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho.
Persigo algumas palavras.
São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema.
Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas.
E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as.
Deixo-as como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda.
Tudo está na palavra.
Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que lhe obedeceu.
Têm sombras, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes.
São antiquíssimas e recentíssimas.
Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada.
Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos.
Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca mais se viu no mundo.
Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas.
Por onde passavam a terra ficava arrasada.
Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras, como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui, resplandecentes... o idioma.
Saímos perdendo.
Saímos ganhando.
Levaram o ouro e nos deixaram o ouro.
Levaram tudo e nos deixaram tudo.
Deixaram-nos as palavras”.


Face poemas, como este, “estremeço”. E, a exemplo de Fernando Pessoa, travestido de Bernardo Soares, essas palavras de tamanha sonoridade e beleza, “fazem formigar toda a minha vida em todas as veias”. Dá para permanecer impassível?! Para mim, é impossível!!!!

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