As heróicas filósofas
medievais
Pedro
J. Bondaczuk
A Idade Média – período
demarcado pelos historiadores como tendo começado no século V e terminado no
século XV, com o chamado Renascimento – é considerado, quase que por
unanimidade, como uma fase de estagnação artística e cultural, sobretudo no
Ocidente. A Filosofia, por conseqüência, igualmente se estagnou. Nesses mil
anos de estagnação intelectual, prevaleceram duas correntes filosóficas
distintas, posto que com o mesmo objetivo: a patrística e a escolástica, ambas
baseadas em concepções religiosas, que diferiam, somente, quanto à abordagem.
Houvesse liberdade de pensamento, não haveria problema. Todavia, não havia.
Tudo o que fosse minimamente contrário aos dogmas da Igreja era considerado
heresia. Essa era tida como o maior dos “crimes” e punida implacavelmente. E
ninguém, por conseqüência, se atrevia a pensar de forma divergente do
estabelecido por Roma, para não terminar seus dias numa masmorra ou, pior, para
não ser incinerado em alguma daqs tantas fogueiras da Inquisição.
Se nesse período houve
poucos filósofos masculinos sem algum tipo de vínculo com a Igreja (a maioria
era constituída de sacerdotes católicos), imaginem filósofas!!! Às mulheres não
era dado o direito de sequer pensar, quanto mais de “filosofar”. Era-lhes determinado papel específico e imutável, de
procriadoras e de virtuosas donas de casa, que deviam irrestrita obediência e
estrita subserviência ao pai, ou aos irmãos homens na ausência desses ou ao
marido quando casadas. Seu pensamento, necessariamente, tinha que ser o do
tutor, fosse ele quem fosse. Houve filósofas nesse longuíssimo período de
trevas, que parecia fadado a nunca acabar? Sim, houve, posto que escassíssimas.
Minha fonte de pesquisas, a enciclopédia eletrônica Wikipédia, lista, por
exemplo, somente cinco delas, sendo quatro européias e uma indiana, embora deva
ter havido algumas outras. Quantas? Sabe-se lá!
A filósofa oriental, no
caso a indiana, mencionada é Akka Mahadevi, que viveu entre 1130 e 1160 d.C. Em
seus 30 anos de vida, deu importante contribuição para a Literatura Kannada
Bakhti, sobretudo como poetisa, cuja poesia era didática. Foi ativa defensora
das causas femininas, buscando o bem-estar das mulheres. Participou de grupos
de estudo de Filosofia, aos quais deu relevante contribuição. Akka não é seu
verdadeiro nome, mas um título honorífico de excelência, que lhe foi dado em
virtude da relevância da sua obra.
Das quatro filósofas
medievais européias, citadas pela Wikipédia, três tiveram estreita ligação com
a Igreja, passando grande parte de suas vidas em conventos e respeitando,
portanto, os dogmas religiosos vigentes em seu pensamento filosófico. Apenas a
quarta foi uma “rebelde”, e tão notável, que suas idéias sobrevivem ainda hoje
e sua obra pode ser encontrada no Brasil, traduzida que foi para o português. A
primeira dessas mulheres foi a alemã Hildegarda de Bingen, que viveu entre 1098
e 1179. Ficou conhecida como terapeuta e visionária. Legou vasta obra de
ciência natural, de Biologia e Botânica e de Astronomia e Medicina. Fundou, em
1165, um monastério beneditino. Seus escritos místicos, teológicos e
filosóficos tiveram grande influência do pensamento platônico.
A segunda filósofa
medieval citada pela Wikipédia é uma figura conhecidíssima na Literatura.
Trata-se da francesa Heloísa de Paráclito, que viveu entre 1101 e 1164. O
curioso a seu respeito é o fato dela ser considerada uma espécie de “Julieta”,
muito antes de William Shakespeare haver escrito sua famosa peça envolvendo
essa trágica personagem. Heloisa foi abadessa do convento de Paráclito, fundado
pelo filósofo, e seu mestre, Pedro Abelardo. Ocorre que professor e aluna se
apaixonaram, à revelia do tio dela, que era seu tutor e homem muito poderoso na
corte. O relacionamento do casal, a princípio só platônico, descambou para uma
paixão carnal, completa, absoluta e total, que resultou, como seria de se
esperar, na gravidez dela. Abelardo e Heloísa casaram-se, e tudo poderia acabar
bem se.... Bem, o tio poderoso não se conformou com o casamento e pagou alguns
homens para que castrassem o infeliz amante. O casal foi separado e nunca mais
se encontrou. Esse caso está em minha pauta, para tratar dele especificamente,
em ocasião propícia. A longa correspondência do casal, que documenta sua
infeliz paixão, que não esfriou nem mesmo com a separação, integra um livro
famoso, traduzido para o português, bastante conhecido pelos estudiosos de
Literatura. Em termos de Filosofia, Heloísa escreveu, ainda, um texto chamado
“Problemata”.
Outra filósofa medieval
foi uma mulher devota e piedosa, canonizada pela Igreja Católica. Ou seja, foi
Santa Catilina (alguns grafam Catarina) de Siena. Viveu entre 1347 e 1380, em
Siena, na Itália. Liderou uma comunidade de homens e mulheres e é considerada a
última reformadora religiosa do período medieval. Filósofa da corrente escolástica,
escreveu “Diálogo da Doutrina Divina”. A ela são atribuídos vários milagres.
Catilina (cujo nome significa “Pura”), foi canonizada, em 1461, pelo papa Pio
II e, em 1970, o papa Paulo VI declarou-a Doutora da Igreja.
Finalmente, a última
filósofa medieval, citada pela Wikipédia, e a única da relação sem nenhum
vínculo com a religião, é Cristina de Pizan. Ela nasceu em 1365 na Itália, mas
mudou-se com a família, quando tinha apenas quatro anos de idade, para Paris,
onde morreu, em 1431, e adotou a cidadania francesa. É considerada a primeira
escritora profissional da Literatura mundial. Seu livro mais famoso, escrito em
1405, foi “A cidade das mulheres”, traduzido para o português e encontrável
(suponho) em algum dos tantos sebos que há por aí. Foi uma figura tão
fascinante, que também pautei comentários específicos abordando sua vida e sua
obra. Cristina foi uma “rebelde” na mais estrita conotação de rebeldia. Entre
outras coisas, questionou a autoridade masculina dos grandes pensadores e
poetas que contribuíram para a tradição misógina e, corajosamente, fez frente
às acusações e insultos às mulheres em seu tempo (em muitos círculos, estes
ocorrem ainda hoje, posto que de maneira dissimulada). E isso, em plena Idade
Média!!!! Foi, sem dúvida, uma grande figura humana e lúcida intelectual e não
estranho nem um pouco o fato da sua obra haver resistido ao tempo e ao
esquecimento.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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