Thursday, February 11, 2016

Há uma substância primordial?


Pedro J. Bondaczuk

O capítulo 4 do livro de Jostein Gaarder, “O mundo de Sofia”, é dos que requerem maior atenção dos leitores (não que os demais não requeiram). Trata do surgimento dos primeiros filósofos “cujas idéias chegaram até nós”. Essa observação, que coloquei entre aspas, é muito importante. Por que? Porque o fato de enfatizar a atuação desses pensadores especificamente não quer dizer que não houve outros, muito anteriores a eles, longe disso. Todavia, se eles existiram (e presumo que sim), nem mesmo seus nomes são conhecidos neste século XXI, quanto mais a época em que viveram, o contexto em que atuaram e sua contribuição para a construção e evolução do pensamento racional da humanidade, pelo menos para nós, do Ocidente.

Esse capítulo 4 foi intitulado por Gaarder de “Os filósofos da natureza”. Traz, como subtítulo, o que Sofia já havia concluído das lições preliminares que recebeu de seu mentor, ao especular sobre a origem do universo. Ou seja, que “nada pode surgir do nada”. A narrativa começa com a adolescente, às vésperas de completar quinze anos de idade, recebendo outra estranha e misteriosa correspondência, até então anônima. No envelope, deixado em sua caixa de correio, havia mais uma ficha, com indagações que podiam ser interpretadas como filosóficas, além de outro cartão postal enviado do Líbano por certo major das forças de paz da ONU, chamado Albert Knag. Era endereçado não propriamente a ela (posto que aos seus cuidados), mas a uma certa Hilde Moller Knag. O curioso é que Sofia Amudsen não tinha a menor noção de quem tal garota se tratava. Ficou sabendo que tinha exatamente sua idade e que, como ela, faria, também, aniversário no dia seguinte.

Nessa nova ficha, em forma de bilhete, que a garota recebeu, havia apenas três perguntas, cujas tentativas de resposta ensejariam a lição do dia dessa pitoresca aula de Filosofia, que eram as seguintes:

“Existiria alguma substância primordial, da qual são feitas todas as outras?”

“A água pode se transformar em vinho?”

“Como da terra e da água pode surgir uma rã viva?”

Jostein Gaarder relata, assim, a reação da adolescente diante dessas questões: “Sofia achou as perguntas meio amalucadas, mas elas continuaram a reverberar em sua cabeça a noite inteira. E também na manhã seguinte, na escola, ela se pegou pensando sobre cada uma delas.

Haveria, mesmo, uma ‘substância primordial’ da qual todas as outras eram feitas? Mas se houvesse mesmo essa ‘substância’ presente em todas as coisas do mundo, como é que ela poderia, de repente, se transformar numa margarida ou então num elefante?

O mesmo raciocínio valeria para a pergunta sobre a água e o vinho. Sofia conhecia a parábola em que Jesus transformou água em vinho, mas jamais a levara ao pé da letra. Se Jesus realmente transformou água em vinho, isso foi obra de um milagre e portanto não era o caso ali. Sofia sabia muito bem que vinho contém água, a qual está presente também em quase todas as substâncias da natureza. Mas apesar de um pepino, por exemplo, ser constituído de noventa e cinco por cento de água, ele é algo diferente. Um pepino é um  pepino e não apenas água.

E ainda havia a pergunta sobre a rã. Aquele professor de filosofia devia gostar muito de rãs. Sofia poderia até ser convencida de que uma rã é feita de água e areia, mas nesse caso a terra não poderia ser constituída de uma única substância. Se a terra fosse de diferentes substâncias, claro que era possível imaginar que água e areia juntas poderiam se transformar numa rã. É bom notar que essa mistura de água e areia teria antes que evoluir para a forma de ovos e depois se transformar em girinos. Porque uma rã mesmo não iria brotar de um vasinho da cozinha, por mais que se insistisse em regá-lo.

Quando voltou da escola naquela tarde, Sofia encontrou na caixa do correio um grosso envelope para ela. Como fez nos outros dias, foi direto para o esconderijo”.

O leitor perspicaz, mesmo sem ler o livro, já adivinhou o conteúdo dessa nova correspondência. O misterioso e até então anônimo mentor filosófico de Sofia respondeu-lhe, com as respectivas justificativas, as “amalucadas” perguntas da véspera. Você seria capaz de respondê-las, minimamente com lógica, antes que eu trate delas na sequência? Está aí excelente exercício para fortalecer, não seus músculos, como é moda atualmente, mas algo muito mais nobre importante do que eles: sua massa cinzenta. Este capítulo do livro de Jostein Gaarder é tão essencial, que tratarei dele em novos comentários, enfatizando, naturalmente, o surgimento da filosofia, como a conhecemos, na remota Grécia Clássica, há pelo menos três milênios.


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