Há uma substância
primordial?
Pedro
J. Bondaczuk
O capítulo 4 do livro
de Jostein Gaarder, “O mundo de Sofia”, é dos que requerem maior atenção dos
leitores (não que os demais não requeiram). Trata do surgimento dos primeiros
filósofos “cujas idéias chegaram até nós”. Essa observação, que coloquei entre
aspas, é muito importante. Por que? Porque o fato de enfatizar a atuação desses
pensadores especificamente não quer dizer que não houve outros, muito
anteriores a eles, longe disso. Todavia, se eles existiram (e presumo que sim),
nem mesmo seus nomes são conhecidos neste século XXI, quanto mais a época em
que viveram, o contexto em que atuaram e sua contribuição para a construção e
evolução do pensamento racional da humanidade, pelo menos para nós, do
Ocidente.
Esse capítulo 4 foi
intitulado por Gaarder de “Os filósofos da natureza”. Traz, como subtítulo, o
que Sofia já havia concluído das lições preliminares que recebeu de seu mentor,
ao especular sobre a origem do universo. Ou seja, que “nada pode surgir do
nada”. A narrativa começa com a adolescente, às vésperas de completar quinze
anos de idade, recebendo outra estranha e misteriosa correspondência, até então
anônima. No envelope, deixado em sua caixa de correio, havia mais uma ficha,
com indagações que podiam ser interpretadas como filosóficas, além de outro
cartão postal enviado do Líbano por certo major das forças de paz da ONU,
chamado Albert Knag. Era endereçado não propriamente a ela (posto que aos seus
cuidados), mas a uma certa Hilde Moller Knag. O curioso é que Sofia Amudsen não
tinha a menor noção de quem tal garota se tratava. Ficou sabendo que tinha
exatamente sua idade e que, como ela, faria, também, aniversário no dia
seguinte.
Nessa nova ficha, em
forma de bilhete, que a garota recebeu, havia apenas três perguntas, cujas
tentativas de resposta ensejariam a lição do dia dessa pitoresca aula de
Filosofia, que eram as seguintes:
“Existiria alguma
substância primordial, da qual são feitas todas as outras?”
“A água pode se
transformar em vinho?”
“Como da terra e da
água pode surgir uma rã viva?”
Jostein Gaarder relata,
assim, a reação da adolescente diante dessas questões: “Sofia achou as
perguntas meio amalucadas, mas elas continuaram a reverberar em sua cabeça a
noite inteira. E também na manhã seguinte, na escola, ela se pegou pensando
sobre cada uma delas.
Haveria, mesmo, uma ‘substância
primordial’ da qual todas as outras eram feitas? Mas se houvesse mesmo essa
‘substância’ presente em todas as coisas do mundo, como é que ela poderia, de
repente, se transformar numa margarida ou então num elefante?
O mesmo raciocínio
valeria para a pergunta sobre a água e o vinho. Sofia conhecia a parábola em
que Jesus transformou água em vinho, mas jamais a levara ao pé da letra. Se
Jesus realmente transformou água em vinho, isso foi obra de um milagre e
portanto não era o caso ali. Sofia sabia muito bem que vinho contém água, a
qual está presente também em quase todas as substâncias da natureza. Mas apesar
de um pepino, por exemplo, ser constituído de noventa e cinco por cento de
água, ele é algo diferente. Um pepino é um
pepino e não apenas água.
E ainda havia a
pergunta sobre a rã. Aquele professor de filosofia devia gostar muito de rãs.
Sofia poderia até ser convencida de que uma rã é feita de água e areia, mas
nesse caso a terra não poderia ser constituída de uma única substância. Se a terra
fosse de diferentes substâncias, claro que era possível imaginar que água e
areia juntas poderiam se transformar numa rã. É bom notar que essa mistura de
água e areia teria antes que evoluir para a forma de ovos e depois se
transformar em girinos. Porque uma rã mesmo não iria brotar de um vasinho da
cozinha, por mais que se insistisse em regá-lo.
Quando voltou da escola
naquela tarde, Sofia encontrou na caixa do correio um grosso envelope para ela.
Como fez nos outros dias, foi direto para o esconderijo”.
O leitor perspicaz,
mesmo sem ler o livro, já adivinhou o conteúdo dessa nova correspondência. O
misterioso e até então anônimo mentor filosófico de Sofia respondeu-lhe, com as
respectivas justificativas, as “amalucadas” perguntas da véspera. Você seria
capaz de respondê-las, minimamente com lógica, antes que eu trate delas na
sequência? Está aí excelente exercício para fortalecer, não seus músculos, como
é moda atualmente, mas algo muito mais nobre importante do que eles: sua massa
cinzenta. Este capítulo do livro de Jostein Gaarder é tão essencial, que
tratarei dele em novos comentários, enfatizando, naturalmente, o surgimento da
filosofia, como a conhecemos, na remota Grécia Clássica, há pelo menos três
milênios.
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