Saturday, February 20, 2016

A necessidade de um projeto


Pedro J. Bondaczuk

Qualquer empreendimento – não importa se a construção de uma casa ou de algum  outro objeto, ou a redação de um livro, por exemplo – para ser viável e, portanto, bem-sucedido, requer, antes e acima de tudo, que o empreendedor saiba com exatidão o que de fato quer. Isso vale, claro, também para o estudo e, principalmente, para pesquisa, notadamente da filosofia. Há outros tantos requisitos a considerar, mas este que citei é absolutamente essencial e imprescindível. Ou seja, é indispensável que haja um “projeto” prévio, logicamente factível, para viabilizar tais empreendimentos O norueguês Jostein Gaarder deixa isso claro no livro “O mundo de Sofia”, ao tratar das teses levantadas pelos filósofos da Antiguidade grega, nos primórdios da Filosofia, na tentativa de explicar os fenômenos da natureza.

O escritor explicita, a certa na altura do seu romance – que simultaneamente é uma aula de filosofia – ao se referir às instruções dadas à jovem adolescente, personagem do seu livro, desafiada a responder à questão: “pode algo surgir do nada?”, referindo-se á origem do universo: “ (...) Como a maior parte dos filósofos viveram em outra época – e talvez numa cultura completamente diferente da nossa – é importante nos determos um pouco no que seria o ‘projeto’ de determinado filósofo. Isso quer dizer que devemos procurar entender exatamente o que aquele filósofo tentava descobrir. Um filósofo podia estar investigando o surgimento das plantas e dos animais. Outro queria saber se existe um Deus ou se os homens possuem uma alma imortal (...)”.

Faz todo o sentido, não é mesmo? Por mais genial que o sujeito fosse, precisaria saber o que pretendia pesquisar especificamente. Buscar explicações pára a “origem” e funcionamento de TUDO seria o mesmo que não querer sair do lugar e não explicar coisíssima alguma. Jostein, na pele do até então ainda misterioso personagem, o mestre – do qual Sofia Amudsen, aliás, não conhecia nada e que jamais vira e nem ouvira sua voz, mas apenas recebera mensagens dele pelo correio, e  que se propusera a lhe ensinar princípios de Filosofia – explica dessa forma a necessidade do estabelecimento de um tema definido, de uma estratégia de raciocínio específica para seguir: “(...) Quando finalmente conseguimos definir qual o projeto de determinado filósofo, torna-se mais fácil acompanhar a sua linha de pensamento. Porque nenhum filósofo se preocupa em responder a rodas as questões filosóficas (...)”. Reitero: nem poderia! Se tentasse, certamente daria com os burros n’água. Não chegaria a lugar algum.

E o misterioso mestre prossegue, no texto de um extenso calhamaço que havia enviado pela manhã, pelo correio, em um envelope pardo, á estupefata e intrigada adolescente de 14 anos, às vésperas de completar 15: “(...) Não vou passar lição de casa para você – muito menos vou lhe ensinar fórmulas matemáticas  complicadas. Como se conjugam os verbos, também está muito distante do meu interesse. Mas de vez em quando vou lhe pedir que faça um pequeno exercício. Se você aceitar estas condições podemos continuar (...)”. Certamente, o ainda misterioso mestre presumiu que a menina aceitaria a tarefa que disse que lhe passaria. Porquanto, de imediato, passou a se referir a um grupo específico de filósofos, com uma linha de pensamento definida.

Gaarder, sempre travestido do personagem, escreve: “(...) Os primeiros filósofos gregos costumam ser chamados de filósofos da natureza, porque foram eles que primeiro se interessaram pela natureza e pelos processos naturais. Já nos indagamos de onde vêm todas as coisas. Muitas pessoas acreditam hoje que, num determinado momento do passado, as coisas surgiram do nada. Esse pensamento não era muito difundido entre os gregos. De uma maneira ou de outra eles acreditavam que ‘alguma coisa’ sempre existiu. Como tudo podia surgir a partir do nada não era a pergunta mais importante, aliás. Os gregos frequentemente se intrigavam com o fato de peixes poderem viver na água e com o fato de árvores imensas e flores multicoloridas nascerem da terra sem vida. Para não mencionar o fato de um pequeno bebê surgir para o mundo de dentro da mãe (...)”.

É preciso levar em conta que naquele remotíssimo passado não havia o mínimo vestígio disso que hoje denominamos de “ciência”. As tentativas das pessoas de explicarem os fenômenos mais triviais da natureza, que hoje uma criança semi-alfabetizada é capaz de entender sem grandes dificuldades, eram todas baseadas em mitos, atribuídas a exóticos deuses, entendidas como “magia” e, claro, tudo não passava de um conjunto de superstições, que hoje nos pasrece risível. Jostein Gaarder prossegue: “(...) Os filósofos testemunhavam com seus próprios olhos como ocorriam constantemente as transformações na natureza. Mas como essas transformações eram possíveis? Como uma substância poderia evoluir de uma coisa para algo totalmente diferente – uma forma de vida, por exemplo? Os primeiros filósofos concordavam que deveria haver uma ‘substância primordial’ por trás de todas as transformações. Como chegaram a essa conclusão não é fácil explicar. Nós sabemos apenas que existia a noção de que deveria haver ‘algo’ que a tudo originava e para onde tudo se voltaria (...)”. Descobrir essa ‘coisa’, então sumamente misteriosa, todavia, era o grande projeto desses filósofos da natureza. Voltarei a tratar dele.


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