Wednesday, February 10, 2016

Homens e ratos


Pedro J. Bondaczuk


O escritor russo, Máximo Gorki, escreveu um magistral conto, “A Mãe”, em que narra a história de uma criança paralítica, incapaz de se defender, que tem várias partes de seu corpo comidas por ratos. Os roedores produzem-lhe chagas enormes que sua mãe, imatura e irresponsável, não pode ou não quer evitar.

Todavia, como constatou Fedor Dostoiéwsky, “a realidade sempre supera a ficção” em termos de crueza e dramaticidade. Algumas situações no Brasil contemporâneo, na virada para o terceiro milênio da Era Cristã, num país que é detentor da décima maior economia do mundo, são tão insólitas, que nem o mais criativo dos dramaturgos ou o mais cruel dos sádicos conseguiria elaborar.

É o caso da história de Edileusa Félix da Silva, de 24 anos, catadora de lixo na cidade pernambucana de Timbaúba, que tem um elemento comum com o citado conto de Gorki: os ratos. Só que ao contrário do menino da narrativa do escritor russo, nem ela e nem sua família são comidos pelos roedores.

Comem-nos, há muitos anos, e até apreciam o seu sabor, conforme admitiram. Não, evidentemente, por razões gastronômicas, mas por causa da necessidade. Premidos pela fome.

Ressalte-se que não são as únicas pessoas a lançar mão desse desesperado recurso e nem se deseja caracterizar Pernambuco como um Estado onde a miséria atinja extremos. Temos, nas periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro, e talvez da própria Campinas, gente que sequer esse animal asqueroso tem para comer. Daí causar revolva a ostensiva tentativa de alguns para fazer com que o Plano Real tenha o mesmo destino do Cruzado e mediante a mesma estratégia: o desabastecimento induzido.

Já estão sendo soltos os primeiros “balões de ensaio” nesse sentido, divulgando-se uma inexistente “corrida às compras”. Talvez uma ínfima parcela da parte “Bélgica”, dessa “Belíndia” que é o Brasil, esteja, de fato, consumindo mais. Certamente, contudo, não são os assalariados.

Estes se dão por satisfeitos quando terminam o mês sem deixar contas para trás. A situação, desta feita, é muito diversa da época do Cruzado, que foi lançado junto com um reajuste salarial amplo.

Portanto, em nome das milhões de Edileusas que há por esse País afora, forçadas a comer ratos – não somente em decorrência das “vacas magras”, mas da ausência delas – dos milhões de subnutridos, de subalimentados e dos reduzidos à condição subumana, convém não dar guarida aos que conseguem prosperar às custas das desgraças e carências alheias.

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 19 de outubro de 1994).


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