Sunday, February 28, 2016

Histórias que trazem a noite

Pedro J. Bondaczuk

Os chamados “contos de fadas” são as primeiras lições práticas de Literatura que temos – em uma época em que sequer intuímos no que consiste essa atividade – mesmo que elementares e incipientes. Refiro-me, claro, aos que têm e tiveram infâncias “normais”, em lares bem estruturados, em que prevalecessem o respeito mútuo e o amor entre seus integrantes. Desconfio, todavia, que sete entre dez crianças no mundo, na atualidade, não privem desse “privilégio”, que deveria ser norma, mas não é. Há milhões, quiçá bilhões delas que sobrevivem por puro instinto, geradas de forma irresponsável e largadas nas ruas e que, claro, jamais terão sequer ligeira noção do que é amor. Bem, o assunto que trago à baila não é bem este. Não me refiro, pois, a estes meninos e meninas que, desconfio, sejam hoje maioria, num mundo perverso e superpovoado, de mais de 7 bilhões de habitantes (estimativas dão conta que a população mundial já passa dos 7,3 bilhões, e segue aumentando, à razão de cinco nascimentos por minuto).

Meu primeiro contato com lições de moral, com o eterno conflito entre o bem e o mal, se deu, justamente, ouvindo  os tais “contos de fadas”. E não somente os tradicionais, de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm, mas os nossos, brasileiros. Afinal, a obra infantil de Monteiro Lobato não é mais do que imenso conjunto de “contos de fadas”, mesmo que o escritor de Taubaté não haja recorrido a nenhuma delas. Ademais nem todas as histórias do gênero conheci através da leitura de livros, feitas pelos adultos. Muitas foram apenas “contadas” – com os devidos acréscimos, adaptações e supressões feitos pelos respectivos narradores, justificando o dito popular do “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Hoje concluo que esses momentos mágicos, em que pude dar livre curso à imaginação, nas asas da fantasia, são algumas das melhores coisas que me aconteceram. Nem sempre essas histórias eram contadas pelos adultos. Quando era por eles, em geral tais narrativas ocorriam na hora de dormir e embalavam meus sonhos infantis com visões de príncipes, princesas, castelos, bruxas, fadas, gigantes, anões, heróis e vilões e vai por aí afora.

Quando estive internado em colégio interno, por volta dos dez anos de idade, entre os vários colegas de internato, havia alguns que conheciam, de cor e salteado, esses tantos contos. E na hora de nos recolhermos para dormir, narravam-nos, na sua versão pessoal, e aos cochichos para não atrair a atenção dos monitores, até que narrador e ouvintes pegássemos no sono. Jamais esqueci e nem esquecerei esses momentos sublimes enquanto viver. Essas lembranças (preciosas) vieram à tona, hoje, ao ler esta declaração da escritora e psicanalista analítica norte-americana Clarissa Pinkola Estés, que escreveu: “Sempre que se conta um conto de fadas, a noite vem”. Claro que eles podem ser contados em pleno dia. Ouvi, por exemplo, muitas dessas histórias, principalmente as ligadas às tradições de nossos indígenas, em sala de aula, na voz das saudosas professorinhas Dona Helena e Dona Esther Freeman. No meu tempo, as mestras não eram, ainda, chamadas de “tias”, como hoje.

E quem é essa Clarissa Pinkola Estés, que me impressionou tanto, e que suscitou tantas lembranças? Bem, é uma escritora de fato impressionante, de 70 anos (fará 71 em 27 de janeiro de 2016), de ascendência mexicana, descendente, todavia, de refugiados suábios. Muito do que escreveu tem nítida influência de suas origens familiares europeias, já que a imensa maioria dos contos de fadas procede do Velho Continente, alguns antigos, muito antigos, antiqüíssimos, de cinco, seis ou mais séculos ou sabe-se lá quantos. Seus livros mais conhecidos, ambos traduzidos para o português e lançados no Brasil, são: “O jardineiro que tinha fé: uma fábula que não pode morrer nunca mais” e “Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem”. Recomendo ambos aos meus pacientes e interessados leitores.

Há quem condene que se contem tais histórias às crianças, argumentando que elas as “alienam”, por tratarem de um mundo de fantasias que não existe. Tolice! É coisa de quem não sabe o que diz e que se mete a dar “lições de conduta”, mas que desconhece o que é melhor para ele, quanto mais para os outros. A estes, Clarissa responde, em um de seus livros: “Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona. Não é uma atividade inútil. Embora haja o intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam histórias, como presentes mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se conhecer bem. Desenvolveram um relacionamento de parentesco, se ele já não existia. E é assim mesmo que deve ser”. E ela, convenhamos, sabe o que diz. Afinal, trata-se de uma psicanalista, cujo “campo de trabalho” é a complexa mente humana.

Por isso, paciente e sábio leitor, não prive seus filhos, ou netos, ou sobrinhos, ou quaisquer crianças com as quais conviva, dessas antiqüíssimas aulas práticas de moral, sem o ranço que esta costuma ter, mediante histórias tão singelas e puras, em que o bem finda invariavelmente por triunfar sobre o mal, mesmo que na prática cotidiana não seja o que ocorra usualmente. Não permita que os dias dos pequeninos se prolonguem indefinidamente, sem trégua para retemperarem forças e para o benigno descanso físico e mental. Porquanto, como Clarissa Pinkola Estés assegura, do alto de sua sapiência, “sempre que se conta um conto de fadas, a noite vem”.


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