Histórias que trazem a
noite
Pedro
J. Bondaczuk
Os chamados “contos de
fadas” são as primeiras lições práticas de Literatura que temos – em uma época
em que sequer intuímos no que consiste essa atividade – mesmo que elementares e
incipientes. Refiro-me, claro, aos que têm e tiveram infâncias “normais”, em
lares bem estruturados, em que prevalecessem o respeito mútuo e o amor entre
seus integrantes. Desconfio, todavia, que sete entre dez crianças no mundo, na
atualidade, não privem desse “privilégio”, que deveria ser norma, mas não é. Há
milhões, quiçá bilhões delas que sobrevivem por puro instinto, geradas de forma
irresponsável e largadas nas ruas e que, claro, jamais terão sequer ligeira
noção do que é amor. Bem, o assunto que trago à baila não é bem este. Não me
refiro, pois, a estes meninos e meninas que, desconfio, sejam hoje maioria, num
mundo perverso e superpovoado, de mais de 7 bilhões de habitantes (estimativas
dão conta que a população mundial já passa dos 7,3 bilhões, e segue aumentando,
à razão de cinco nascimentos por minuto).
Meu primeiro contato
com lições de moral, com o eterno conflito entre o bem e o mal, se deu,
justamente, ouvindo os tais “contos de
fadas”. E não somente os tradicionais, de Hans Christian Andersen e dos Irmãos
Grimm, mas os nossos, brasileiros. Afinal, a obra infantil de Monteiro Lobato
não é mais do que imenso conjunto de “contos de fadas”, mesmo que o escritor de
Taubaté não haja recorrido a nenhuma delas. Ademais nem todas as histórias do
gênero conheci através da leitura de livros, feitas pelos adultos. Muitas foram
apenas “contadas” – com os devidos acréscimos, adaptações e supressões feitos
pelos respectivos narradores, justificando o dito popular do “quem conta um conto,
aumenta um ponto”. Hoje concluo que esses momentos mágicos, em que pude dar
livre curso à imaginação, nas asas da fantasia, são algumas das melhores coisas
que me aconteceram. Nem sempre essas histórias eram contadas pelos adultos.
Quando era por eles, em geral tais narrativas ocorriam na hora de dormir e
embalavam meus sonhos infantis com visões de príncipes, princesas, castelos,
bruxas, fadas, gigantes, anões, heróis e vilões e vai por aí afora.
Quando estive internado
em colégio interno, por volta dos dez anos de idade, entre os vários colegas de
internato, havia alguns que conheciam, de cor e salteado, esses tantos contos.
E na hora de nos recolhermos para dormir, narravam-nos, na sua versão pessoal,
e aos cochichos para não atrair a atenção dos monitores, até que narrador e
ouvintes pegássemos no sono. Jamais esqueci e nem esquecerei esses momentos
sublimes enquanto viver. Essas lembranças (preciosas) vieram à tona, hoje, ao
ler esta declaração da escritora e psicanalista analítica norte-americana
Clarissa Pinkola Estés, que escreveu: “Sempre que se conta um conto de fadas, a
noite vem”. Claro que eles podem ser contados em pleno dia. Ouvi, por exemplo,
muitas dessas histórias, principalmente as ligadas às tradições de nossos
indígenas, em sala de aula, na voz das saudosas professorinhas Dona Helena e
Dona Esther Freeman. No meu tempo, as mestras não eram, ainda, chamadas de
“tias”, como hoje.
E quem é essa Clarissa
Pinkola Estés, que me impressionou tanto, e que suscitou tantas lembranças?
Bem, é uma escritora de fato impressionante, de 70 anos (fará 71 em 27 de
janeiro de 2016), de ascendência mexicana, descendente, todavia, de refugiados
suábios. Muito do que escreveu tem nítida influência de suas origens familiares
europeias, já que a imensa maioria dos contos de fadas procede do Velho
Continente, alguns antigos, muito antigos, antiqüíssimos, de cinco, seis ou
mais séculos ou sabe-se lá quantos. Seus livros mais conhecidos, ambos
traduzidos para o português e lançados no Brasil, são: “O jardineiro que tinha
fé: uma fábula que não pode morrer nunca mais” e “Mulheres que correm com os
lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem”. Recomendo ambos aos
meus pacientes e interessados leitores.
Há quem condene que se
contem tais histórias às crianças, argumentando que elas as “alienam”, por tratarem
de um mundo de fantasias que não existe. Tolice! É coisa de quem não sabe o que
diz e que se mete a dar “lições de conduta”, mas que desconhece o que é melhor
para ele, quanto mais para os outros. A estes, Clarissa responde, em um de seus
livros: “Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona. Não é uma atividade
inútil. Embora haja o intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam
histórias, como presentes mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se
conhecer bem. Desenvolveram um relacionamento de parentesco, se ele já não
existia. E é assim mesmo que deve ser”. E ela, convenhamos, sabe o que diz.
Afinal, trata-se de uma psicanalista, cujo “campo de trabalho” é a complexa
mente humana.
Por isso, paciente e
sábio leitor, não prive seus filhos, ou netos, ou sobrinhos, ou quaisquer
crianças com as quais conviva, dessas antiqüíssimas aulas práticas de moral,
sem o ranço que esta costuma ter, mediante histórias tão singelas e puras, em
que o bem finda invariavelmente por triunfar sobre o mal, mesmo que na prática
cotidiana não seja o que ocorra usualmente. Não permita que os dias dos
pequeninos se prolonguem indefinidamente, sem trégua para retemperarem forças e
para o benigno descanso físico e mental. Porquanto, como Clarissa Pinkola Estés
assegura, do alto de sua sapiência, “sempre que se conta um conto de fadas, a
noite vem”.
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