Formigamento de prazer
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor português,
Eugênio Andrade, escreveu, em “Rosto precário”, que “as palavras são nossa
condenação”. Bem, depende de quais usamos e em que circunstâncias. E a quem
destinamos, óbvio. Elas podem, também, todavia, ser nossa redenção, por que
não? Eugênio justifica sua declaração: “Com palavras se ama, com palavras se
odeia. E, suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras”. Todavia,
como nos comunicaríamos se elas não existissem? Por gestos? Pelo olhar? Pelo
toque? Ora, ora, ora, se com palavras há tantos equívocos e más interpretações,
imaginem sem elas! Seria o caos. Não haveria nenhum tipo de relacionamento
entre as pessoas, nem mesmo o instintivo, ditado pela natureza, entre o homem e
a mulher.
Da minha parte, “amo”
as palavras, mesmo as que expressem sentimentos e atitudes negativas. Elas são
a matéria-prima do que faço, a forma de expressar meus sonhos, pensamentos e
sentimentos, mesmo correndo o risco de equívocos se as utilizar de maneira
inadequada. Responda-me, caríssimo leitor, você já estremeceu ao ler um texto
bem escrito que o tenha tocado profundamente e emocionado às lágrimas, por sua
beleza e verdade? Eu sim. E Fernando Pessoa também. É o que ele dá a entender
neste trecho do seu “Livro do Desassossego”, escrito sob o heterônimo de
Bernardo Soares: “Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras
são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas.
Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie
– nem sequer mental ou de sonho –
transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou
os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página
de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me
raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo”.
Cabe, aqui, uma
explicação para situar o leitor a propósito dos autores citados por Pessoa. O
Fialho, a que ele se refere, é seu conterrâneo José Valentim Fialho de Almeida,
jornalista e escritor pós-romântico, muito popular em fins do século XIX, mas
que andou por anos e anos esquecido, sobretudo depois que foi para Cuba, onde
fixou residência e onde morreu em 4 de março de 1911. Recentemente, sua memória
e sua obra foram resgatadas por Manuel Fonseca, Que publicou uma antologia de
seus melhores contos e mais expressivas crônicas. De seus nove livros, destaco
“O país das uvas”, datado de 1893, que tenho agora em mãos. Oportunamente,
tratarei desse escritor cujas páginas fizeram Fernando Pessoa “estremecer”.
O outro autor citado no
“Livro do Desassossego” dispensa comentários. François-Rene Auguste de
Chateaubriand é uma espécie de clássico da literatura francesa. É citado,
inclusive, em um texto de Victor Hugo, pela “força de sua imaginação e brilho
de seu estilo, unindo eloqüência e colorido nas descrições que faz” em seus
tantos textos. Tomei contato pela primeira vez com sua escrita no livro de
francês da segunda série ginasial, no tempo em que esse idioma integrava o
currículo do antigo ginásio. Encantei-me com ele, mas não tanto quanto Pessoa.
O genial
“poli-escritor” dos heterônimos acrescentou, no texto citado: “Tal página, até,
de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um
ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. Como todos os grandes
apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se
sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num
devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao
colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água
sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem,
tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens,
trêmulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas,
onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso”.
Meu sentimento,
todavia, é, rigorosamente, como o expresso por Pablo Neruda, neste monumental
poema, publicado em seu livro autobiográfico “Confesso que vivi”:
“Sim
senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e
baixam.
Prosterno-me
diante delas.
Amo-as,
uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as.
Amo
tanto as palavras.
As
inesperadas.
As
que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem.
Vocábulos
amados.
Brilham
como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal,
orvalho.
Persigo
algumas palavras.
São
tão belas que quero colocá-las todas em meu poema.
Agarro-as
no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me
diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas,
como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas.
E
então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as,
liberto-as.
Deixo-as
como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão,
como restos de naufrágio, presentes da onda.
Tudo
está na palavra.
Uma
idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou
como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que lhe obedeceu.
Têm
sombras, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi
agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser
raízes.
São
antiquíssimas e recentíssimas.
Vivem
no féretro escondido e na flor apenas desabrochada.
Que
bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos.
Estes
andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas
encrespadas, buscando batatas, butifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro,
milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca mais se viu no mundo.
Tragavam
tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em
suas grandes bolsas.
Por
onde passavam a terra ficava arrasada.
Mas
caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras, como
pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui, resplandecentes... o
idioma.
Saímos
perdendo.
Saímos
ganhando.
Levaram
o ouro e nos deixaram o ouro.
Levaram
tudo e nos deixaram tudo.
Deixaram-nos
as palavras”.
Face poemas, como este, “estremeço”. E, a exemplo de
Fernando Pessoa, travestido de Bernardo Soares, essas palavras de tamanha
sonoridade e beleza, “fazem formigar toda a minha vida em todas as veias”. Dá
para permanecer impassível?! Para mim, é impossível!!!!
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