Ser ou não ser...
Pedro
J. Bondaczuk
O monólogo que começa
com o dilema, com a expressão de dúvida “to be, or not to be, that is the
question” – que traduzida para o português significa “ser ou não ser, eis a
questão” – conquistou inédita repercussão mundial (no tempo e no espaço)
insuperável, sobretudo, por essa frase em especial. O leitor certamente já
ouviu e, quem sabe utilizou, essa citação nos mais variados contextos, mesmo os
que nada tenham a ver com teatro e nem mesmo com literatura. Até locutores
esportivos já disseram isso na narração de alguma partida de futebol quando um
dos times se vê diante do impasse de se deve atacar o adversário ou se defender
para garantir um resultado.
O monólogo aberto dessa
maneira dá início ao terceiro ato da peça “A trágica história de Hamlet,
príncipe da Dinamarca”, escrita, em Londres, por William Shakespeare, entre os
anos de 1599 e 1607 (como tudo o que se refere ao bardo inglês, isso também
gera polêmicas e controvérsias, sem que se chegue a um consenso). Comporta
tantas interpretações que apenas elas dariam para compor, sozinhas, um alentado
livro de ensaios, sobretudo filosóficos. O curioso é que, relendo meus diários,
descobri que há pouco mais de 30 anos, cheguei a acalentar essa pretensão. O
tempo passou, a vida me engolfou e esqueci, por completo, esse ousado projeto.
Quem sabe agora possa
encarar este desafio, tendo por pretexto estas descompromissadas reflexões
diárias, e assim desenvolver tão ousada obra, texto por texto, partilhando cada
um deles com você, paciente leitor, que me dá a honra da sua fidelidade.
Assunto é que não falta. Só espero que não míngüem sua paciência e seu
interesse por estes comentários estritamente pessoais que partilho diariamente
com vocês já há um par de anos. Antes de qualquer consideração sobre o
monólogo, é necessário contextualizá-lo, embora ele vá além, muito além do mero
enredo dessa produção teatral. Antecedendo a expressão de seu profundo dilema,
o príncipe Hamlet dá de cara com o fantasma do pai, que havia sido recentemente
assassinado. Este clama por vingança contra seu assassino, seu próprio irmão,
Cláudio, que além de se apossar do trono da Dinamarca, assumiu, de lambuja, sem
nenhuma cerimônia, a “cama” da sua mãe, a rainha Gertrude.
Em princípio, o jovem
príncipe cai em estado de profunda melancolia, de aterradora depressão
(pudera!). Tinha, diante de si terrível dilema: atender ao pedido do fantasma
do pai, que clamava por vingança, ou tentar esclarecer a questão por vias
legais e conseguir, dessa forma, exemplar punição para o assassino usurpador?
Você, leitor, o que faria em situação semelhante? Hamlet decidiu se passar por
louco. Urdiu, todavia, um plano, que considerava infalível. Fez uma trupe de
atores encenarem a morte de seu pai diante de toda a corte. Seu objetivo,
claro, era o de demonstrar, de forma concreta, como numa espécie de
“reconstituição policial” de um homicídio, a culpa do tio, antes de manchar as
próprias mãos de sangue.
Todavia manchou-as.
Assassinou Polônio, conselheiro de Cláudio, por engano. Pensava ter matado o
tio. Ocorre que a vítima, morta por equívoco, era pai da bela Ofélia, com quem
tinha intenção de se casar. Seu erro, porém, arruinou tudo. Nem vingou o pai e
nem ficou com a mulher, pois esta... cometeu suicídio. Inconformado com as duas
mortes, a de Polônio e o suicídio de Ofélia, seu irmão, Laerte, desafia Hamlet
para um duelo. Claro que a morte do sobrinho era tudo o que Cláudio queria.
Resolveria de uma só vez todos seus problemas. Para garantir que isso
ocorreria, envenenou a ponta da espada de Laerte, além de pôr veneno também em
uma taça de vinho que seria oferecida ao príncipe antes do duelo.
Para resumir a
história, ao contrário do tradicional “happy end” da ficção, o final foi
sumamente trágico. Todos os principais personagens – Laerte, Hamlet, Gertrude e
o causador de tudo isso, Cláudio – morreram. Se quiserem saber mais detalhes,
leiam a peça ou assistam sua representação em algum dos tantos teatros que
certamente será levada à cena (como vem ocorrendo com impressionante
regularidade ao longo de mais de 400 anos). Embora não falte movimentação nesta
peça específica (e em várias outras do dramaturgo inglês) a reflexão do herói
da história sobrepuja sua ação. Ninguém, no seu tempo, havia seguido essa
linha. Shakespeare nos coloca diante das reflexões do trágico príncipe. Hamlet
tinha à sua frente esse enorme dilema, esse profundo drama de consciência:
vingar ou não a morte do pai.
É nesse contexto que
entra o celebérrimo monólogo que, para lhe refrescar a memória, paciente
leitor, transcrevo abaixo, em uma das melhores traduções para o português já
feitas no meu entender, a de Millor Fernandes (embora não queira dizer com isso
que não existam outras tantas, e boas. Existem sim, e muitas):
"Ser
ou não ser, eis a questão.
Será
mais nobre sofrer na alma
Pedradas
e flechadas do destino feroz
Ou
pegar em armas contra o mar de angústias
E,
combatendo-o, dar-lhe fim?
Morrer;
dormir;
Só
isso. E com o sono - dizem - extinguir
Dores
do coração e as mil mazelas naturais
A
que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente
desejável. Morrer, dormir...
Dormir!
Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os
sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando
tivermos escapado ao tumulto vital
Nos
obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que
dá à desventura uma vida tão longa.
Pois
quem suportaria o açoite
e
os insultos do mundo,
A
afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As
pontadas do amor humilhado,
as
delongas da lei,
A
prepotência do mando, e o achincalhe
Que
o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo,
ele próprio, encontrar seu repouso
Com
um simples punhal?
Quem
agüentaria fardos,
Gemendo
e suando numa vida servil,
Senão,
porque o terror de alguma
coisa
após a morte -
O
país não descoberto, de cujos confins
Jamais
voltou nenhum viajante
nos
confunde a vontade,
Nos
faz preferir e suportar males que já temos,
A
fugirmos para outros que desconhecemos?
E
assim a reflexão faz todos nós covardes.
E
assim o matiz natural da decisão
Se
transforma no doentio pálido do pensamento.
E
empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas
demais, saem de seu caminho,
Perdem
o nome de ação".
Colhi, na enciclopédia
eletrônica Wikipédia, estas importantes observações, que têm que ser levadas em
conta, para melhor compreensão do original de Shakespeare, confrontado com
várias versões da peça (e sobretudo desse icônico monólogo): “Na imaginação
popular a fala é pronunciada por Hamlet segurando a caveira de Yorick, embora
as duas ações estejam longe de si no texto da peça. Também é importante
observar que o príncipe não está sozinho no palco: Ofélia, Polônio e o Rei
estão escondidos. Há ainda a dúvida debatida por editores de edições diversas
sobre o fato de Hamlet ver ou não o Rei e Polônio. Caso ele realmente tenha
visto, talvez tenha pronunciado indiretas através de suas metáforas”. Por hoje
é só (por absoluta falta de espaço para mais considerações).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment