Sunday, August 16, 2015

Ressurreição da memória

Pedro J. Bondaczuk

O sucesso, seja no que for que fizermos (óbvio), será sempre bem-vindo. Ninguém inicia qualquer empreendimento com a convicção ou mesmo com a intuição de que irá fracassar. Tal atitude não faria o menor sentido.  Quando somos bem-sucedidos em algo é sinal de que fomos competentes, previdentes e aplicados. Tanto pode ser na invenção de um novo processo industrial que beneficie a coletividade, por exemplo, quanto na produção de alguma obra de arte de reconhecida qualidade, como pintar um quadro que beire á perfeição, elaborar uma escultura que pareça ter vida, escrever um livro que atraia milhões de leitores etc.etc.etc.

Todavia, temos que ter em mente que o sucesso não é duradouro (nada é). Tem prazo de validade, que é variável, ao sabor do acaso, que tanto pode ser de alguns meses, quanto de séculos e, mais raramente, até de milênios. Mas algum dia, seja pela razão que for, um dia se esgota. Pior se isso acontecer quando ainda estivermos vivos. A transição da fama para o esquecimento tende a ser brusca e sem nenhum aviso. Não estou sequer pensando em termos de vaidade, mas em algo mais prático, no aspecto patrimonial. O súbito esquecimento implicará em cessação, por exemplo, da venda da obra antes tão reconhecida. Afetará, pois, nossos herdeiros, filhos, netos etc. Afinal, salvo exceções, em termos práticos aspiramos ao sucesso pensando neles, pois temos plena consciência da nossa efemeridade.

Muitos podem contestar essa minha afirmação com o caso de William Shakespeare que, às vésperas de se completarem 400 anos da sua morte, permanece mais famoso do que nunca, com suas peças sendo encenadas mundo afora, por milhares e milhares de companhias teatrais, sem perderem interesse (pelo contrário) e gerando enormes receitas de bilheteria aos seus produtores. Seu sucesso hoje, aliás, é muito maior do que quando estava vivo. Naquela ocasião, era restrito ao seu país, a Inglaterra e na verdade, nem a isso, mas quando muito, à cidade de Londres e a uma ou outra localidade nos arredores. Hoje, no entanto, é mundial. Seu caso, porém, inscreve-se no das raras exceções. Ademais, nem sempre foi assim.

Muitos ignoram que Shakespeare chegou a ser praticamente esquecido ao longo de todo o século XVII. Já no XVIII, voltou, é verdade, a ser lembrado, mas para ser ironizado por diversos pensadores, sobretudo pelo filósofo francês Voltaire, sem que, obviamente, pudesse se defender. Mas esses ataques acabaram tendo efeito contrário ao pretendido pelos detratores. É aquela história do “falem mal, mas falem de mim”. A roda da fortuna girou, o acaso lançou seus dados e eis que, subitamente, a obra de Shakespeare voltou à tona, no século XIX, com muito mais força do que antes e se mantém no topo até hoje.

Isso se deu com o surgimento, no horizonte das artes, do Romantismo, do qual ele se tornou uma espécie de paradigma. Meire Kusumoto, no artigo “Shakespeare, para além do mito”, escreveu o seguinte a propósito: “Em seu famoso ensaio ‘Sobre William Shakespeare’, o poeta francês Victor Hugo encontrou no bardo inglês um símbolo da luta romântica contra a ordem estabelecida e o bom gosto clássico, um artista capaz de unir o ‘teatro do Olimpo e o teatro de feira’, o grotesco e o sublime”. Nenhum outro autor teatral demonstrou a mesma habilidade.

Embora não possam (e não sejam) levados a sério, são muitos os contestadores, na verdade detratores da obra do dramaturgo inglês nos dias atuais. Alguns buscam encontrar contradições em seus enredos, incoerências nos seus diálogos e falta de verossimilhança em seus personagens. Há quem vá, até mesmo, ao extremo de contestar sua autoria das peças mais célebres, como “Hamlet”, “Otelo”, “Romeu e Julieta”, “Sonhos de uma noite de verão” etc. Indiferentes ao ridículo a que se expõem, vários desses pseudo-especialistas vão ao extremo de colocar em dúvida até mesmo a existência física de um William Shakespeare, levantando a ilógica hipótese de se tratar de mero pseudônimo  adotado por suposto membro da realeza. Tolices, claro, mas às quais muitos basbaques aderem.

Fico com a conclusão de Meire Kusumoto: “Com uma biografia incompleta e obras contestadas, William Shakespeare, hoje, 450 anos após seu nascimento, causa mais comoção do que controvérsia. Referência dentro da dramaturgia, seu nome ultrapassa a alcunha de um autor para se estabelecer quase como um estilo literário e teatral”. Acho interessante o que escreveu o romancista italiano Alberto Moravia: “O sucesso é como um jantar pesado – cumpre comê-lo todo, digeri-lo, eliminá-lo. E depois se preparar para outro jantar”. Ou seja, depois de gozarmos a justa euforia do êxito, devemos colocar à nossa frente novos objetivos a conquistar e agir com a mesma competência, previdência e aplicação nesse novo empreendimento. E isso a vida inteira. Afinal, nem sempre o acaso atua no sentido de resgatar nossa obra do esquecimento e recolocá-la no pedestal da fama, como ocorreu com William Shakespeare.


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