Não me esqueças...
Pedro
J. Bondaczuk
A lembrança de uma
pessoa ausente, salvo uma ou outra exceção, é uma espécie de homenagem que
nossa memória lhe rende. Significa que, de alguma forma, ela foi importante em
nossa vida (para o bem ou para o mal). Quando se trata de alguém que nos
beneficiou, ou nos encantou, sua imagem nos vem á mente sempre acompanhada de
saudade. Gostaríamos que o tempo retrocedesse e pudéssemos conviver, de novo,
com quem nos foi tão importante algum dia. Não raro o reencontro é difícil de
ocorrer, dada a distância que nos separa. Às vezes, porém, é impossível. Por
que? Por razão óbvia. Porque essa pessoa tão querida e inesquecível já morreu.
Nem por isso a esquecemos, claro, caso tenhamos gostado de fato dela. Aliás,
suspeito que, nestes casos, a lembrança seja muito mais intensa e dolorida.
Além disso, vem sempre acompanhada de frustração, de certa revolta, de irreparável sensação de
perda.
Da mesma forma que nos
lembramos com carinho e afeição de ausentes que deixaram marcas positivas em
nossas vidas – pais, filhos, outros parentes, amigos etc. e, sobretudo amadas –
gostaríamos de também ser lembrados por eles, e com o mesmo afeto, com idêntico
sentimento de carinho e com a mesma intensidade que lhes devotamos. Nem sempre
somos. Nesse caso, não fomos importantes para essas pessoas como supúnhamos. Se
fôssemos, jamais seríamos, em circunstância alguma, esquecidos. A memória às
vezes é traiçoeira, convenhamos, mas não chega a tanto. O lado bom dessa questão é que sequer ficamos
sabendo do seu esquecimento (salvo raras exceções). Ainda bem. Poupa o nosso
ego.
Há uma flor que
simboliza, a caráter, nosso anseio de jamais sermos esquecidos pelos que
admiramos, reverenciamos e, principalmente, pelos que amamos, cuja reciprocidade tanto ansiamos. É o
miosótis. Trata-se de uma plantinha rasteira, não muito conhecida no Brasil,
mas bastante popular na Europa, sobretudo na Rússia, de onde é originária.
Apresenta, na maioria, coloração azul, mas pode ser encontrada, também, nas
cores branca e rosada. Há, mundo afora, notadamente na Europa e certas partes
da Ásia, mais de 50 variedades dessa exótica flor.
Conheço inúmeros poemas
em que ela é utilizada como metáfora de fidelidade, de amor verdadeiro e,
principalmente, de recordação. Não por acaso, ela é mais conhecida, em vários
países, por um nome mais expressivo e revelador: “Não-me-esqueças” (em
português). E essa nomenclatura tem correspondência, com igual significado, em
tantas outras línguas, como o inglês (“Forget-me-not”), alemão
(“Vergissmeinnicht”), espanhol (“Nomeolvides”) e italiano (“Nontiscordardimé”),
por exemplo. Em alguns lugares é chamada, simplesmente, de “Verônica”.
No Brasil, todavia,
raros poetas já recorreram a esta flor como metáfora de amor verdadeiro, de
fidelidade e de recordação. Isso explica-se por sua raridade entre nós, já que
se trata de uma planta que prefere climas frios, onde se dá melhor. Por isso, é
farta em locais mais altos, como os Alpes suíços, por exemplo. Eu compus, há 34
anos, um poema, tendo o miosótis por metáfora. Foi quando meu terceiro filho, o
Alexei, nasceu. A importância desses versos, meio que confusos, é meramente
emocional, com pouco, ou até mesmo nada, de literários. Embora se trate de uma
espécie de relíquia familiar, partilho-o com você, paciente leitor, contando
com sua indulgência:
Meu sucessor
“Quando
a exótica flor da miosótis
desabrochou
pétalas, de opalinas cores,
e
o único olho (mágico) de turmalina
da
Esperança voltou-se para o amanhã,
tomei
o cetro imperativo dos deuses,
místico
cinzel que molda o futuro,
e
talhei, na carne, nas vísceras amorfas
com
convicção, com afã e com fé,
o
concreto esboço da minha imortalidade.
Da
remota ancestralidade eslava
burilei
profundíssimos sentimentos,
aos
sons exóticos, harmônicos e sutis
das
balalaikas dos barqueiros do Volga.
Dos
antepassados latinos e visigóticos
minha
amada, parceira e cúmplice
moldou,
em sua nobilíssima estrutura,
a
sôfrega voluptuosidade mediterrânea
que
há de marcar seus passos no porvir.
Da
olímpica, sensata, Palas Atenea,
mãe
inspiradora da Helade gloriosa,
você
herda, pequenino, a chama do saber
que
nem o tempo, jamais, haverá de apagar.
Quando
os anos passarem e meu corpo murchar,
quando,
afinal, cansado desta andança,
o
fogo da vida decrescer e se apagar
e
de mim restar não mais do que a lembrança,
Alexei,
filho de luz, imortal esperança,
desabroche
novas, delicadas, miosótis,
que
se reproduzam com fartura sem fim
e,
assim como o significado da mística flor,
que
jamais venham a se esquecer de mim”.
Tudo indica que meu
apelo metafórico, feito naquela ocasião, funcionou (pelo menos vem
funcionando). Até hoje, meu filho nunca me esqueceu. Espero que não me esqueça
jamais. Não sou o único, todavia, a lançar mão dessa flor como metáfora.
Encontrei, no livro “Permanência”, de Márcia Mendes (que tive o prazer e o
privilégio de comentar dia desses), esta delicada pérola, de beleza e
sensibilidade, intitulada “Miosótis
azul” e que diz:
“No
lugar do insuportável
Nasceu
um miosótis azul,
Viçoso!
Finjo
entrar na esperança,
Em
irreverente delírio.
Eu
triste,
A
palavra vilipendia
A
angústia
E
inscreve-se
Na
escrita da poeta”.
Voltarei,
oportunamente, ao tema, para tratar, especificamente, de lendas que deram
origem a esta metáfora a propósito do miosótis.
Uma delas, todavia, adianto hoje, por ser a mais difundida em várias
partes da Europa. Segundo ela, a origem do nome da flor remontaria ao bíblico
Paraíso do Éden. Contam as pessoas mais velhas (que vêm transmitindo essa
história geração após geração) que, no princípio do mundo, quando Adão cumpria
a tarefa de dar nomes aos animais e vegetais e a tudo o mais que havia, se
esqueceu de uma planta pequenina, rasteira, de florzinhas diminutas, posto que
delicadas e belas, pela qual passou batido, sem a notar. Esta, inconformada,
interpelou o pai da humanidade – naquele tempo animais e plantas falavam,
conforme a lenda – cobrando-o pelo inexplicável esquecimento. Foi quando Adão,
percebendo sua falha, decidiu batizar o miosótis de “Não-me-esqueças”, para
jamais voltar a esquecer da humilde plantinha. Esta, e outras histórias a
propósito dessa flor são, por si sós, magníficos poemas, posto que em forma de
prosa de anônimos autores.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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