Fama e credulidade
Pedro
J. Bondaczuk
“A fama é a prova de
que as pessoas são crédulas”. Quem afirmou isso foi o filósofo norte-americano
Ralph Waldo Emerson. Isso cabe a caráter na maior parte das pessoas famosas,
cujos nomes sobrevivem ao tempo e ao esquecimento, aos séculos, aos milênios até,
e mantêm-se como se vivas estivessem. Não raro elas são tratadas com
familiaridade, como se fossem nossas vizinhas, nossos parentes quem sabe, ou
amigos com os quais privamos no cotidiano. Quanto, porém, do que se sabe desses
mitos é verdadeiro? Creio que pouco, muito pouco, um quase nada. Todavia, são
escritos textos e mais textos a seu respeito e ninguém questiona, contesta ou
põe em dúvida sua veracidade. A fama mantém-se, quando não aumenta, mesmo que
não merecida. Por que? Por causa da credulidade das pessoas.
O que tornou William
Shakespeare famoso não foi nenhum feito heróico, ou mesmo o lado perverso da
alma humana. Ele não salvou, por exemplo, muitas vidas, ou mesmo uma só, como
médico abnegado (que não foi) em alguma das tantas e devastadoras epidemias que
mataram milhões em seu país e em seu tempo. Não foi nenhum general que
comandasse exércitos em batalhas tidas por perdidas, mas que tenha,
miraculosamente vencido. Também não foi nenhum ditador cínico e sanguinário que
tenha subjugado, a ferro e fogo, algum infeliz país, como Hitler ou Pol Pot..
Não foi nada disso. Sua fama não decorre de coisas sequer parecidas. Ficou
famoso por sua obra dramática e poética de rara genialidade. Creio que deveria,
pois, ser mantida apenas por esse aspecto. Mas não é.
Há uma profusão de
livros e mais livros abordando aspectos pessoais dessa figura polêmica e
controvertida e todos (ou quase todos) escritos sem base e nem fundamento. Há
quem o descreva como sujeito grosseiro, amoral, bêbado, tarado, devasso, bissexual
e vai por aí afora, supostamente baseados em “documentos históricos”. Mas em
quais, se não há, praticamente, nenhuma referência documental sobre sua vida?
Volta e meia, aparecem artigos em revistas, jornais e mais recentemente em
espaços da internet com alegadas “descobertas” a propósito de algum aspecto da
sua vida, geralmente escabroso e muitos e muitos acreditam, sem contestarem a
fonte em que esses textos se baseiam. Com isso, os crédulos contribuem para que
se manche a imagem (quando não se a destrua) de personalidades famosas, que não
podem se defender por não estarem mais vivas.
Há uma espécie de
obsessão coletiva em torno da sexualidade de Shakespeare, cuja sanidade é, há
já algumas décadas, questionada por muitos, que escrevem a respeito como se
tivessem convivido com o bardo inglês e privado de sua intimidade. Claro que
não conviveram. Afinal, estão separados dele por pelo menos quatro séculos, ou
seja, 400 anos. Mesmo que convivessem, não poderiam assegurar coisa alguma a
propósito, a menos que fossem seus parceiros sexuais, no caso de sua alegada
bissexualidade. Imaginem separados por um período tão longo, de quase meio
milênio, desse personagem.
E no que esses alegados
“pesquisadores” se baseiam para chegarem a essas criminosas conclusões (para
mim, não passam de “assassinos de reputações”)? Em documentos? Em diários
escritos pelo dramaturgo? Em relatos confiáveis de seus contemporâneos? Não!!!
Escrevem o que escrevem com base, exclusivamente, no que chamam pomposamente de
“provas circunstanciais”. E no que estas consistem? Pasmem, em interpretações
de suas peças e principalmente de seus 154 sonetos!!! Desde quando isso prova
alguma coisa sobre a vida de algum escritor, notadamente deste, cuja
matéria-prima era a ficção, a fantasia, a criatividade? Concluem, dessa leitura
(que podem sequer ter entendido), que Shakespeare mantinha relações com várias
mulheres. Até aí, tudo bem. Pode ser verossímil. Mas asseguram que ele também “pode” ter se
envolvido eroticamente com pelo menos um homem. Barbaridade!
Para chegarem a essa
conclusão, citam, amiúde, dois sonetos específicos: os de números 18 e 20.
Cuidado, poetas, com o que vocês escrevem. Caso se tornem famosos, daqui a 400
anos, algum pseudo pesquisador desses poderá interpretar de forma negativa e
capciosa alguma de suas metáforas e lançar dúvidas sobre sua sanidade, sua
honra e sua reputação. Esse tipo de coisa enoja-me e não considero que tenha a
ver qualquer coisa com Literatura. É a obsessão do escândalo pelo escândalo.
Não estou sugerindo que Shakespeare tenha sido algum santo (nenhum de nós é) e
que nunca tenha feito nada de errado. Provavelmente fez, somente não se sabe o
quer e quanto. Mas daí a afirmar que ele
foi um devasso, sem a mais remota prova documental, vai uma distância de milhares
de anos-luz. E o que diz, afinal, o tal soneto 18? Diz o seguinte (conforme a
tradução de Arnaldo Poesia):
“Se
te comparo a um dia de verão
És
por certo mais belo e mais ameno
O
vento espalha as folhas pelo chão
E
o tempo do verão é bem pequeno
Às
vezes brilha o Sol em demasia
Outras
vezes obscurece com frieza;
O
que é belo declina num só dia,
Na
eterna mutação da natureza.
Mas
em ti o verão será eterno,
E
a beleza que tens não perderás;
Nem
chegarás exausto ao triste inverno:
Nestas
linhas com o tempo crescerás.
E
enquanto nesta terra houver um ser,
Meus
versos ardentes te farão viver”.
O que há de escandaloso
neste soneto? Onde a alegada “paixão homossexual”? Ademais, Shakespeare poderia
estar se referindo a algum personagem mitológico (sua obra está eivada de
mitologia), a Apolo, por exemplo. Quem pode jurar que não? Ah, como a fama é
perigosa para a reputação, sobretudo quando se mantém e cresce após a morte dos
famosos! Para não ser perniciosa, dependeria da honestidade de quem a
mantivesse viva e da credulidade de milhões. E estas, convenhamos, não são
nada, nada confiáveis.
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