Providencial milagre do
acaso
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor, filósofo e
jesuíta espanhol, Baltasar Gracián y Morales – contemporâneo de William
Shakespeare – escreveu, em certa ocasião, que “a perfeição não consiste na
quantidade, mas na qualidade. Tudo o que é muito bom foi sempre pouco e raro,
enquanto a abundância é pouco apreciada”. Essa observação cabe a caráter na
avaliação da obra do bardo inglês, natural da cidadezinha de
Stratford-Upon-Avon (quer a dramática, quer a poética), que apesar de não ser
relativamente tão extensa quanto a de outros contemporâneos totalmente
esquecidos, é consumida, admirada e reverenciada mundo afora pelo teor e pela
forma. Destaque-se que muitas das 37 peças que escreveu, por um motivo ou por
outro, foram imensos fiascos, de crítica e de público, quando encenadas. Hoje,
todavia... arrebatam platéias onde quer que sejam levadas ao palco.
Tenho plena convicção,
sem precisar de nenhuma prova, que alguma produção de William Shakespeare está
em cartaz, neste exato momento, em algum teatro do mundo, atraindo grandes
públicos. Quem sabe se trate até de alguma que se constituiu em contundente
fiasco quando encenada em Londres pela primeira vez. Sequer preciso de
comprovação para afirmar isso com tanta certeza dada a qualidade das suas peças
e a empatia que promovem com os espectadores. Admiração maior, todavia,
causa-me a aceitação da obra poética de Shakespeare. Ele publicou (em 1609) um
único livro “Sonetos”, com escassas 154 composições do tipo e foi o quanto
bastou para se imortalizar. É certo que contou com a ação do acaso para ser
protagonista de uma improvável e rara “ressurreição literária”.
Recorde-se que
Shakespeare foi completamente esquecido após sua morte, aos 52 anos de idade, e
permaneceu assim por mais de um século. Lá um belo dia, não se sabe quando e
nem como, algum editor curioso, com larga visão e inegável bom gosto, deve ter
topado com um exemplar de “Sonetos”. Poderia não tê-lo lido, o que não seria
surpreendente. Poderia, mesmo lendo-o, não ter gostado dele, o que não seria
nem mesmo de se estranhar. Afinal, gosto não se discute. Ou, mesmo lendo o
livro, e gostado, poderia relutar um publicá-lo, para não correr o risco de
ficar com “um mico na mão”. Porém, contrariando toda a lógica, principalmente a
comercial, tal editor leu, gostou, entusiasmou-se com o conteúdo, aceitou
correr riscos e... deu no que deu. Pena que a história não registre quem foi
esse sortudo (ou maluco, quem sabe).
Não só não se sabe quem
foi esse “milagreiro”, que ressuscitou o poeta Shakespeare, como se desconhece
onde ele vivia e quando isso aconteceu. Só se sabe que foi na segunda metade do
século XVIII, mais de cem anos após o autor dos “Sonetos” ter morrido, e
“duplamente” – fisicamente e mediante esquecimento de que sequer existiu.
Hoje... esse livro solitário já teve milhares de traduções. Só nos países de
fala alemã, por exemplo, elas ascendem a mais de uma centena. Não há nenhuma
língua importante no mundo, incluindo latim, turco, japonês e esperanto, em que
os sonetos de Shakespeare não tenham sido traduzidos. Encontram-se versões
deles até em algumas centenas de dialetos. E pensar que se tratou de um único e
solitário livro!!!
Destaque-se que
“Sonetos”, na época de sua publicação, não chegou, propriamente, a ser
unanimidade e muito menos um sucesso. Encontrou, isso sim, inúmeras
resistências por parte da crítica e do público, tanto pela forma como foi
escrito, quanto pelo conteúdo. No primeiro caso, as restrições se deveram ao
fato das suas composições não seguirem o modelo tradicional desse tipo de
poesia, o “petrarquiano”. No segundo, pela forma com que tratou o amor.
Discorreu sobre ele não como sendo coisa sublime, divina e pura, como os demais
poetas do seu tempo tratavam o tema, mas enfatizou seu aspecto animal, nu e
cru, quase que explicitamente sexual, sobretudo nos 27 sonetos que dedicou a
uma misteriosa “Dark Lady”. Houve quem o considerasse, por isso, pornográfico,
cínico, tarado, pervertido e coisas assim. Como eram hipócritas nossos remotos
ancestrais! Tudo isso era hipocrisia pura, deslavada e escrachada! Mas... deixa
pra lá...
O fato é que este único
e solitário livro de poesias de Shakespeare é, hoje, clássico dos clássicos de
literatura inglesa. Nesse preciso instante, provavelmente, em alguma escola
secundária qualquer dos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália etc.,
algum professor aplicado deve estar analisando com aplicação, com seus alunos,
algum dos 154 sonetos que Shakespeare publicou no remotíssimo ano de 1609.
Pensando em tudo isso, não posso deixar de dar razão ao pensador português,
Agostinho Silva, quando observou que muitas vezes “são os defeitos que fazem as
boas obras, e são as qualidades as que muitas vezes as abatem”.
O que havia de
supostamente defeituoso nos sonetos shakespearianos, tanto na sua forma quanto
no seu conteúdo, supostamente pornográfico (mas na verdade erótico) é o que os
torna brilhantes e atrativos para os leitores de várias gerações, já a partir
de meados do século XVIII, quando de sua “ressurreição”, até os dias de hoje. O
filósofo e diplomata francês, Henri Bergson, estava coberto de razão quando
assegurou: “A qualidade é a quantidade de amanhã”. E não é?!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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